Estupro nas relações de intimidade: uma violência invisível
Fernanda Moreira de Menezes1 e Hebe Signorini Gonçalves2
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Resumo
Este trabalho busca compreender as apropriações do conceito de estupro por parte das usuárias do Centro de Referência de Mulheres da Maré – Carminha Rosa (CRMM-CR). A investigação se divide em três momentos: análise dos relatos registrados no banco de dados do CRMM-CR, com recorte nos anos de 2013 e 2014; entrevistas semiestruturadas com oito usuárias do serviço; e apresentação de um caso de estupro atendido pela autora principal deste trabalho. A partir destes três ângulos de análise, foi possível refletir sobre o conceito de estupro relacionando com a literatura sobre o tema. A questão de gênero é um dos eixos da discussão, uma vez que os papéis tradicionais de gênero atravessam o modo como culturalmente interpreta-se o ato sexual não consentido.
Palavras-chaves: Estupro; Violência Sexual; Gênero.
Violación en las relaciones de intimidad: una violencia invisible
Resumen
Este trabajo busca comprender las concepciones del término violación por parte de las usuarias del Centro de Referência de Mulheres da Maré – Carminha Rosa (CRMM-CR). La investigación se divide en tres fases: análisis de los informes registrados en la base de datos del CRMM-CR, con recorte en los años 2013 y 2014; entrevistas semiestructuradas con ocho usuarias del servicio y la presentación de un caso de violación atendido por la autora principal de este trabajo. A partir de estos campos de análisis, fue posible reflexionar sobre el concepto de violación relacionándolo con la literatura sobre el tema. La cuestión de género es uno de los ejes de la discusión, ya que los papeles tradicionales de género atraviesan la interpretación cultural de los actos sexuales no consentidos.
Palabras Clave: violación, violencia sexual, género.
Introdução
O objetivo deste trabalho é compreender as apropriações da noção de estupro por parte das usuárias atendidas no Centro de Referência de Mulheres da Maré – Carminha Rosa (CRMM-CR)3. As observações aqui apresentadas resultam do trabalho de conclusão da autora principal no curso de Residência Multidisciplinar de Políticas de Gênero e Direitos Humanos, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sob orientação da segunda autora.
O cotidiano dos atendimentos no CRMM-CR permitiu avaliar a dificuldade das mulheres em discernir as violências vividas em suas relações de intimidade, principalmente a violência sexual. Ainda que as narrativas das usuárias apontassem para violações marcantes e contínuas pelos companheiros, o conteúdo por elas narrado ao longo dos diversos atendimentos não era reconhecido como violência.
Grande parte dos estudos sobre o estupro enfatiza sua ocorrência no espaço público. A nota técnica “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da saúde” (2014), que analisa as estatísticas do Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (SINAN), alerta para o fato de que só em 2011 as notificações de violência sexual passaram a ser objeto de registro sistemático e padronizado; como consequência, o país não dispõe de séries históricas que permitam análise de longo prazo. Com base nos dados disponíveis, o documento indica que as tentativas de estupro ou os estupros consumados alcançam, por ano, cerca 527 mil casos no Brasil, e apenas 10% deles chegam à polícia. Esse número reduzido pode ser entendido a partir do discurso das mulheres que sofreram o estupro, que anunciam com frequência a vergonha em torná-lo público.
É possível, além disso, que elas receiem que sua denúncia não receba tratamento adequado. Os movimentos feministas têm insistido na necessidade de aprimorar o funcionamento das delegacias, inclusive as delegacias especializadas, e estudo do CFEMEA (2014) mostra que a violência institucional no interior dos aparelhos estatais não constitui novidade. No relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre a violência contra as mulheres, as delegacias do Rio de Janeiro são criticadas pelos “constantes desrespeitos a mulheres durante os atendimentos (…), como por exemplo, (…) no registro da queixa são alertadas pelos agentes de que se não comprovarem os fatos serão processadas, em uma fala intimidadora e que contribui para que a mulher desista da ação” (BRASIL, 2013, p. 622).
Apesar disso, é possível afirmar a alta incidência do estupro por companheiros. Em 2015, no estado do Rio de Janeiro, as formas mais frequentes de violência sexual foram o delito de estupro (4.128 mulheres) ou tentativa de estupro (484 mulheres). Desse total, 1.465 mulheres (cerca de 32%) tinham relação de proximidade com o autor da agressão (ISP, 2016).
Dado que as estatísticas são recentes, e que o número de denúncias é provavelmente reduzido em razão de dificuldades específicas das mulheres que sofrem violência sexual, os estudos qualitativos são valiosos, pois podem lançar luz sobre as especificidades do fenômeno do estupro no país. Assim, a realidade das mulheres que buscam o CRMM-CR serviu como plataforma de análise na tentativa de compreender a invisibilidade dos casos e das denúncias de estupro nas relações de intimidade. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com oito mulheres que fazem uso do serviço continuamente. Os relatos dos atendimentos dos anos de 2013 e 2014, registrados no banco de dados do CRMM-CR, complementaram a sistematização das informações. Como terceira frente de análise, apresentamos a reflexão sobre um caso de estupro atendido durante cinco meses pela autora principal deste trabalho.
Assim, o foco do presente estudo é o estupro nas relações de intimidade; ao analisar as diversas compreensões da noção dessa modalidade de estupro para as usuárias, pretendemos examinar a ausência de dados no que se refere ao fenômeno, o que em certa medida contribui para sua invisibilidade. Como contraponto, episódios de estupro cruento4 – trazidos pelas entrevistadas e retirados dos relatos dos atendimentos – serão apresentados para que suas características e especificidades possam colaborar na análise.
Produção histórica do estupro e o gênero como analisador
A valoração do estupro como violação é trabalhada por Vigarello (1998), que analisa os casos ocorridos na França entre os séculos XVI e XX. O autor mostra que a violência sexual foi enfrentada de maneiras distintas no período e que a própria definição jurídica de estupro incorporou sucessivamente essas transformações. Para ele, o conceito de estupro dialoga com um conjunto de transformações históricas, sociais e jurídicas: no campo social, ele conecta a construção da noção de estupro à emergência dos conceitos de sujeito e de privacidade, afirmando que “ela [a privacidade] é diretamente paralela à história da sensibilidade, que tolera ou rejeita o ato brutal” (p. 13). Os desfechos dos casos de estupro analisados decorriam da suscetibilidade dos envolvidos – juízes, opinião pública e população em geral – à violência do ato, ora o repudiando, ora o consentindo.
Para Vigarello (1998), as mudanças jurídicas, sociais e culturais não lograram eliminar os estigmas sobre a vítima de estupro. A força dos costumes resiste e permanece influenciando as formas de abordar o tema. O autor afirma que “esses limites confirmam a manutenção da dominação sobre a mulher, a existência de um julgamento logo de saída inigualitário, a estabilidade relativa dos costumes, apesar da inegável mudança da jurisprudência e da lei” (p. 247). Dessa forma, as invisibilidades que permeiam esta temática estão vinculadas às práticas sociais que reafirmam a lógica de culpabilização da vítima.
No Brasil, os estigmas em torno da mulher se assemelham ao cenário francês descrito por Vigarello (1998), o que é compreensível já que tanto o modelo legal quanto as práticas jurídicas brasileiras sofreram forte influência do positivismo europeu. Kolker (2009) assinala que “é no Código Penal de 1940, inspirado no Código Italiano de 1930, que verdadeiramente se pode ver a força da influência positivista” (p. 190). De fato, ali se percebe que a ordem e o controle social são o bem maior a ser preservado, inclusive no que diz respeito à organização moral das relações entre os sexos.
A hierarquia de gênero e o patriarcado sustentam-se em práticas jurídicas que mantêm o domínio masculino sobre a mulher. A exemplo, no Código Penal de 1940, os crimes sexuais estavam reunidos sob o título “Dos Crimes Contra dos Costumes”. A escolha da expressão “costumes” indica que a legislação não privilegiava a proteção da mulher e sua liberdade sexual; a ordem social, refletindo o pudor coletivo e a moralidade pública, era o objeto de tutela. A proteção da vítima e os efeitos físicos e psíquicos sofridos por ela não eram ponderados, pois o estupro era entendido como uma ofensa à família (SEGATO, 1999; VIGARELLO, 1998).
Nessa lógica, o estupro perpetrado por parceiros íntimos sequer era considerado, visto que a noção de “débito conjugal” – presente no Código Penal de 1940, influenciado pelo Código Civil de 1916 – atribuía à mulher o cumprimento de todas as obrigações conjugais e a recusa sexual era considerada uma dívida passível de ser cobrada a qualquer tempo e a qualquer custo.
Na lei 12.015/09, que alterou o Código Penal, o estupro passa a ser definido como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, absorvendo a conduta do revogado delito de atentado violento ao pudor. Contudo, a mudança mais relevante está na alteração do título em que o artigo 213 está inserido, que passa a intitular-se “Dos Crimes Contra a Liberdade Sexual”.
O conceito jurídico de liberdade sexual “significa que o titular da mesma determina seu comportamento sexual conforme motivos que lhe são próprios no sentido de que é ele quem decide sobre sua sexualidade, sobre como, quando ou com quem mantém relações sexuais” (JIMÉNEZ, 2003 apud GRECO, 2010, p.452). A substituição da expressão “costumes” para “liberdade sexual” é uma mudança paradigmática e não apenas uma alteração na terminologia. A liberdade sexual se torna o bem jurídico protegido no crime de estupro. O texto legal sofreu uma alteração cujo valor simbólico é determinante tendo em vista o protagonismo dado à liberdade sexual.
Ainda que emblemáticas, essas transformações nos códigos legais não alcançaram a moral vigente. Analisando as concepções anunciadas por homens autores de estupro, Machado (1999) assinala a existência de “dois códigos de moralidade – o individualismo de direitos e o código relacional da honra” (p. 298). A noção de estupro se torna polarizada, ora tratada como conduta vergonhosa dos homens, ora estigmatizando as mulheres, convertendo-as em imorais. A diferença de gênero, apontada por Machado (1999) no discurso dos agressores, demonstra a permanência de estigmas de gênero nos discursos dos sujeitos.
Seguindo esta linha, Pateman (1993, apud SEGATO, 1999) relaciona o estupro e as relações de gênero através das concepções de sociedade contratual e da lei do status. A autora define o estupro como “o ato de força originário, instituinte da primeira lei, do fundamento da ordem social” (p. 397). Contrariando pensadores como Freud e Lacan, Pateman assinala que não é o incesto que funda a primeira lei, mas sim o estupro. A primeira lei é a lei do status que demonstra o poder e domínio sobre os outros. No contexto da cena primeva, o pai da horda assenhora-se das mulheres dos outros homens e seu assassinato inscreve o princípio de um contrato de direitos, no qual os homens confirmam reciprocamente seus direitos.
Na interpretação de Segato (1999), o estupro revela a vulnerabilidade do contrato no que se refere às relações de gênero. A incapacidade do contrato de intermediar as relações demonstra a presença da organização cultural hierárquica que excede os postulados jurídicos. A desigualdade entre os gêneros é anterior à fundação da primeira lei e a lei do status antecede o contrato entre os homens. A elaboração do contrato prevê a segurança e a conservação do status masculino, baseada em um código prévio em que a mulher era objetificada. A partir da composição contratual entre pares masculinos, a mulher “passa a ser protegida como parte do domínio de um homem participante deste contrato, ou seja, o sistema de status persiste, ativo, no interior do sistema de contrato” (p. 398). A modernidade promove a participação ativa da mulher; no entanto, “a estrutura de gênero nunca passa a ser inteiramente contratual, sendo o status o seu regimento permanente” (PATEMAN, 1993 apud SEGATO, 1999, p. 399).
Nesse sentido, o estupro para Segato (1999) é “qualquer forma de sexo forçado por um indivíduo com poder de morte sobre o outro (…) o uso e o abuso do corpo do outro, sem que o outro participe com intenção ou envolvimento compatível” (p. 388). A noção jurídica de estupro e a definição acima mencionada contribuíram para a elaboração do instrumento utilizado nas entrevistas realizadas com as usuárias do CRMM-CR, e durante a análise do material reunido na pesquisa servindo como norteadores para a reflexão, especialmente devido à compreensão genérica das entrevistadas e das usuárias sobre os termos estupro, violência sexual e crime sexual.
Percurso Metodológico
Inicialmente, a pesquisa teve como foco os relatos dos anos de 2013 e 2014. No primeiro ano, 228 usuárias foram atendidas, e em 2014 foram 278 mulheres. Dentro deste recorte, foram encontrados 35 casos sobre a temática pesquisada, contendo diversas expressões: estupro nas relações de intimidade, estupro cruento, abuso sexual infantil. Os 35 relatos selecionados auxiliaram no refinamento das questões a serem pesquisadas.
Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 8 mulheres, cujas idades variam dos 30 aos 65 anos. As entrevistadas participaram em caráter voluntário e consentiram com a gravação em áudio. Das 8 entrevistadas, duas foram vítimas de violência sexual em algum momento da vida, e as demais tiveram contato próximo com a violência através de amigas ou parentes.
Como elemento adicional de análise, apresentamos o caso de estupro cruento, vivenciado por Bianca5 e atendido por uma assistente social e pela autora principal deste trabalho durante cinco meses (13 encontros). Recortes dos registros desse atendimento serão trazidos ao longo da análise dos dados. A história de Bianca será contada através dos recortes para que, ao final da exposição das categorias de análise, a reflexão sobre seu caso possa ser tomada de modo mais consistente. Este caso será utilizado por apresentar com mais detalhes a fluidez do conceito de estupro, a partir da perspectiva de Bianca.
Para analisar e categorizar o material coletado, o método utilizado foi a análise de conteúdo (BARDIN, 1977). Foram elaboradas quatro categorias de análise, tratadas a seguir.
Definindo a partir das experiências
O escudo moral que impede a verbalização de temáticas sexuais contribui para que o entendimento da violência sexual se torne ainda mais obscuro. É possível que o não reconhecimento de situações de estupro nas relações de intimidade seja atravessado por essa dificuldade (SUÁREZ et al, 1999). O material reunido indicou que as mulheres, em sua maioria, definiram o estupro através de histórias vividas ou de narrativas de conhecidos: suas experiências antecedem a conceituação da violência. O estupro cruento foi a modalidade mais referida nas entrevistas. Por essa razão, os casos de estupro perpetrados por desconhecidos também serão descritos tendo em vista o enriquecimento da discussão.
“O meu caso foi eu mesma, eu mesma. Eu com 16 anos, assim, 15… eu nunca tinha beijado (…) Aí um dia eu tava indo pra igreja, juntou ele [o melhor amigo da escola] e mais 3 amigos dele. (…) Aí quando chegou no meio do caminho ele falou assim ‘Agora eu quero ver se você é virgem mesmo’. (…) Aí tá, quando eu penso que não aí vem chegando os meninos, aí me agarraram assim, aí ele foi me abusou” (Entrevista Carolina, 2014).
Entre o privado e o público
Ao comparar o estupro cruento àquele que ocorre em relações de intimidade, a maioria das entrevistadas acredita que o segundo é muito mais doloroso devido à ruptura da confiança envolvida na relação de afeto. A decepção, o desejo de ser protegida e o sentimento de traição são alguns dos efeitos deste ato. O estupro cruento chega a ser “compreensível”, se comparado ao perpetrado pelo companheiro:
“Eu acho mais horrível por ser conhecido. Quando é um desconhecido, eu acho é mau, é horrível, mas por ser conhecido eu acho que é onde você pensa que tá protegida e você não tá, pra mim isso é uma monstruosidade. (…) O que estupra dentro de casa tem um relacionamento, conhece a família, tem que ter (…) algum sentimento na cabeça desse homem que faz uma coisa dessa, tem um conhecimento. E o que tá fora é um absurdo também (…)” (Entrevista Claudia, 2014).
A relação sexual não consentida pela mulher, dentro da relação de intimidade, tem como efeito o aumento das agressões físicas (DANTAS-BERGER e GIFFIN, 2005). Estas possivelmente já ocorriam antes em menor escala e, para tentar fazer cessar as agressões e acusações, a mulher cede. A clássica crença de débito conjugal é resgatada já que as obrigações sexuais no casamento deveriam ser pagas. Além disso, os filhos do casal se tornam alvos diretos ou indiretos da violência.
“Bianca estava se arrumando para ir ao trabalho quando o marido a pegou por trás e a jogou na cama. Ele já estava sem roupa e tentava tirar a dela. Ela pediu que ele não fizesse nada e que a soltasse. Ele dizia que não soltaria (…). O filho do casal [1 ano e 8 meses] acompanhou toda esta cena e pedia para o pai parar (…) Por fim, Bianca conseguiu arranhá-lo nas costas e se soltou dele. Em seguida, o marido ficou extremamente nervoso (…) Jogou todos os objetos pessoais de Bianca no chão e disse que ela não entraria mais em casa, pois ela não estava cumprindo com as suas obrigações” (Atendimento Bianca, 2014).
Tanto Claudia quanto Bianca relatam os episódios sem nomeá-los como estupro ou tentativa de estupro; do mesmo modo, a análise dos 35 relatos registrados no banco de dados evidenciou que as situações de violência sexual não foram reconhecidas pelas usuárias como uma forma de violação. O entendimento de que a relação sexual é um dever conjugal, o desconhecimento de casos similares, a falta de informação para buscar um serviço especializado e a educação recebida na infância são algumas pistas para compreender o não reconhecimento do estupro no interior das relações íntimas.
“(…) eu sofria violência porque eu pensava que era só comigo também. (…) Eu sentia assim: ‘ah é comigo’, eu não tinha o direito de falar. Era isso que se passava na minha cabeça. Porque eu venho assim duns pais que me ensinaram assim que eu tinha que ficar calada, assim uma criação, nem eles era culpado e assim um pouco calada, não falar muita coisa, entendeu?” (Entrevista Claudia, 2014).
Efeitos do Estupro
O ato sexual não consentido, seja ele na rua ou no ambiente doméstico, provoca mudanças tanto no convívio social quanto na percepção da vítima sobre o próprio corpo. Na tentativa de apagar tais mudanças, as vítimas executam “rituais de purificação [que] parecem ter pouca eficácia para dissolver a marca corporal do estupro porque é a marca da ‘alma’, (…) a marca é profunda e inscreve-se na construção da subjetividade” (MACHADO, 1999, p. 303).
“Ela se mostra muito apreensiva sobre a possibilidade de contaminação (…) contou que a ginecologista do IML lhe disse que se o agressor [do estupro cruento] tiver alguma doença, a chance de contágio é de 75%. (…) Ela diz que não sabe como se sente exatamente, mas que é ‘imprópria’ para ficar com ele [o marido], pois está ‘suja e doente’ [e] sente como se tivesse algo de ruim dentro dela. Disse que a suspeita de que o agressor tem a doença [HIV] foi confirmada através dos exames feitos na ocasião de sua prisão” (Atendimento Bianca, 2014).
Além disso, decorrências psicológicas como fobias, desconfiança dos homens, desprazer ou desprezo pelo sexo, desânimo com a vida, infantilização, depressão, síndrome do pânico, projeção dos medos nos filhos foram alguns dos efeitos relatados pelas usuárias. “É sempre assim, é… foi sendo assim, uns 10 anos assim, à força, forçado. Porque eu não gostava até que eu fiquei com nojo do sexo” (Entrevista Claudia, 2014).
O apoio familiar e social é fundamental para enfrentar uma situação de estupro, tenha ele ocorrido na relação de intimidade ou no anonimato das ruas. A importância de uma estrutura de apoio é citada pelas entrevistadas em pesquisa realizada por Sudário et al (2005, p. 84). Para as autoras, as influências “nas manifestações e no grau dos danos causados àquela vitimada pelo estupro, independente da violência do próprio ataque”, estão vinculadas à disponibilização dessa estrutura de apoio.
Dessa forma, o contexto pós-estupro pode fortalecer os vínculos familiares, encorajando a mulher no enfrentamento desta ocorrência. Na direção oposta, as reações negativas provocam o afastamento da família, a negação do ato e a punição por não ser “mais honrada”, sentidos derivados dos estereótipos e estigmas que envolvem o estupro.
“[Depois do estupro] Proibiriam as minhas primas, (…) nenhuma falava comigo mais (…) Eu fiquei como uma estranha, a única pessoa que continuou falando comigo foi meus irmãos mesmo e os meus parentes por parte de mãe. Nem meu pai. (…) quando meu filho nasceu, (…) Meu pai falou assim, (…) ‘eu não tenho nem filha, quanto mais neto’. Bem assim, meu pai falou comigo” (Entrevista Carolina, 2014).
Quando o estupro resulta em gravidez, exige da mulher escolhas extremamente complexas que vão do aborto à manutenção da gestação, esta eventualmente atravessada pela repulsa ao bebê, seja ela manifesta ou não. Nos casos de estupro na relação de intimidade, a desconfiança e ausência de apoio do parceiro agravaram a situação.
(…) Ai eu fiquei grávida por um ato que foi violentado, aí depois quando meu filho nasceu ele [marido] chegou falou que o filho não era dele (…). É tanto que quando eu tava grávida assim de oito meses, ele me deu um chute assim pra eu perder o meu neném. (…) porque eu não queria filho, (…) Dava soco na barriga (…) Por causa que eu ficava com nojo por conta disso, que ele foi concebido assim. (Entrevista Claudia, 2014).
Culpabilização: de si mesma, pela família, pelos conhecidos e desconhecidos
Algumas entrevistadas, dentre as que não se declararam vítimas de estupro, culpabilizaram a mulher por ser violada; para elas, o comportamento e a vestimenta seriam formas visíveis de autorização do estupro. “Se eu não quero ser agredida porque eu vou botar um brinco de ouro que eu sei que a gente não pode mais sair na rua com brinco de ouro, eu boto pra que? Tô chamando ladrão, né? Se eu saio pelada, tô chamando o que? Homem!” (Entrevista Marcia, 2014).
Nos casos que resultaram em gravidez, a culpa estava ancorada na não aceitação da criança e nas falhas nos cuidados iniciais do filho. “É culpa, porque ele não foi amamentado, ele não foi, ele não teve todo aquele amor que toda mãe olha pro seu filho quando nasce” (Entrevista Carolina, 2014). Lordello e Costa (2014) escrevem que, “quando decidem ter o filho, as mulheres se veem diante de um duplo desafio: prepararem-se para a maternagem e minimizar os efeitos das projeções nas quais os filhos podem se tornar depositários da violência sofrida, perpetuando‑a por meio da transmissão geracional” (p. 97).
Ademais, algumas mulheres relataram episódios de violência institucional ao buscar a polícia. A desqualificação do relato da mulher por agentes do Estado a leva a questionar a validade da denúncia junto às delegacias policiais.
“Eu cheguei pro delegado e falei assim que ele [o marido] tava ameaçando meu filho de morte, que eu se eu ficasse em casa ele ia matar eu e meu filho (…) então eu falei tudo isso pro delegado que eu tava cansada de apanhar, de meus filhos sofrer. Aí o delegado ainda falou assim: ‘não, isso é por causa da droga, não dá queixa de seu marido não porque seu marido vai ficar fichado e aí você depois vai voltar pra ele, vai se arrepender, dá mais uma chance pra ele’. E aí eu vi aquilo ali, o delegado falar isso, eu me senti, eu falei: ‘caramba, eu que tô errada de tá aqui’” (Entrevista Claudia, 2014).
As múltiplas formas de culpabilização parecem estar intimamente relacionadas à moral. O tratamento que a vítima de estupro recebe de alguns familiares, das instâncias jurídicas e das próprias mulheres é uma das heranças da estrutura patriarcal.
Quando a ressignificação se torna uma possibilidade
Em razão do acompanhamento do processo de ressignificação da noção de estupro, escolhemos destacar o caso de Bianca e apresentá-lo separadamente. Por ter vivenciado as duas formas de estupro e os efeitos de cada uma, tornaram-se evidentes em seu discurso os significados distintos e as interferências mútuas das violências sofridas. O encaminhamento para atendimento no CRMM-CR ocorreu em função da perpetração do estupro cruento. A partir deste episódio, Bianca relata que sua vida mudou: as formas de se relacionar e existir no mundo foram afetadas. O trauma subsequente ao ato fez com que as atividades diárias fossem interrompidas: pediu demissão no trabalho; afastou-se da faculdade por algum tempo; e manteve distância do filho devido ao risco de contágio do vírus HIV. Sudário et al (2005) escrevem sobre as emoções posteriores ao estupro: “o medo foi um dos sentimentos mais predominantes instalados nas vítimas. Entre eles destacam-se: ter adquirido o vírus HIV; reencontrar o estuprador; sair de casa; ficar sozinha e contar o fato aos familiares e parceiro” (p. 83).
A relação conjugal tornou-se um dos objetos centrais de sua fala. O contexto conjugal anterior ao estupro cruento incluía diversas traições do marido descobertas por ela; situações de violência física, verbal e psicológica durante o relacionamento, sem anunciá-las como agressões; tentativas de sexo não consensual também foram descritas sem que fossem nomeadas como estupro ou violência.
Apesar dos sentimentos negativos eliciados pelo estupro cruento, Bianca permitiu a aproximação e o retorno do marido para a sua vida. No entanto, pouco após a ocorrência do estupro cruento, o marido já não apresentava a solidariedade dos primeiros momentos, passando a desconfiar de Bianca por conta da sua recusa sexual. As cobranças da avó e da mãe a compeliam a manter os laços conjugais, reforçando papéis clássicos de gênero.
Para Timm, Pereira e Gontijo (2011), a produção de características rígidas e estigmatizantes ocasionam as dificuldades psicológicas, que são sustentadas pelo medo e insegurança envolvidos na ruptura dos valores tradicionais sociais cristalizados. As autoras apontam que “a universalização e a naturalização dos papéis de gênero (…) atribuíram às mulheres um lugar simbólico de resignação, responsabilidade sobre (…) a filiação e a maternidade, e de investimento permanente para se fazerem (…) atraentes ao olhar de um homem (2011, p. 254).
Confrontando-se com a rigidez dos papéis tradicionais de gênero, Bianca deu início a um processo de reflexão sobre sua relação com os familiares, principalmente o marido. Este, questionado, confirmou as expectativas da relação conjugal e mostrou-se agressivo diante do que entendia como ameaça da mulher ao papel masculino e, em seguida, tentou estuprá-la usando ameaças e força física.
Machado escreve: “(…) é no contrato conjugal que [os homens] buscam o sentido de seus atos violentos: são considerados atos ‘corretivos’” (2001, p. 10). A correção estaria ancorada na reprodução de uma conduta feminina idealizada. A autora aponta que no código relacional da honra, a função de provedor masculino é equivalente à fidelidade sexual da mulher. Sob esse ponto de vista, ao negar o ato sexual, Bianca estaria descumprindo sua parte no acordo marital, em nome do qual o marido estaria autorizado a usar seu poder de corrigir. Foi a partir do episódio de coação sexual pelo parceiro que Bianca reconheceu as semelhanças entre o estupro cruento e as relações sexuais no espaço conjugal. A confirmação do início de um processo de ressignificação da noção de estupro teve lugar quando a usuária solicitou ao companheiro que buscasse no dicionário o significado de estupro, deixando claro que qualquer relação sexual não consensual seria considerada, por ela, uma violência.
Aventamos a possibilidade de que Bianca tenha se aproximado da posição de sujeito do não. Para Dantas-Berger e Giffin (2005), a expressão sujeito do não representa a rejeição da mulher à condição de objeto sexual, exprimindo sua recusa ao ato sexual não consentido e exercendo um ato de contrapoder que torna patentes as frustações e desilusões decorrentes do estupro perpetrado por parceiro íntimo. Dantas-Berger e Giffin (2005) mostram que a concepção feminina de sujeito sexual compreende a sexualidade para além da relação genital e, neste sentido, é possível afirmar que Bianca alcançou o lugar de sujeito do não ao negar a sua submissão incondicional à vontade sexual do cônjuge. Ao repelir o ato não-desejado, a usuária inaugura um caminho que pode conduzi-la ao reconhecimento e à consideração dos próprios desejos.
Considerações Finais
O propósito inicial do trabalho compreendia a apreensão dos sentidos atribuídos pelas usuárias do CRMM-CR ao fenômeno do estupro. No decorrer das entrevistas, casos de estupro cruento e de estupro nas relações de intimidade foram trazidos e discutidos, e muitos desses discursos mostram que a compreensão do estupro toma como referência os casos ocorridos na rua, que parecem mais facilmente identificáveis e passíveis de nomear como estupro; a hierarquização entre o estupro cruento e o perpetrado por parceiro íntimo, este anunciado como mais grave, foi trazida pelas usuárias para explicitar a gravidade específica de cada forma de estupro.
Tendo em vista que o anúncio da ocorrência do estupro cabe à mulher, essa dificuldade de reconhecimento pode ajudar a compreender as subnotificações ainda recorrentes: como visto, as mulheres não associam certos comportamentos do parceiro a episódios de violência e, com isso, a prática do estupro nas relações de intimidade permanece à margem das estatísticas, como apontam estudos recentes. A dupla invisibilidade – por ser sexual e por ser na esfera privada – obstrui o enfrentamento desta violência. As usuárias entrevistadas, que não sofreram estupro por parceiros íntimos, condenam veementemente esta modalidade de violência, considerando‑a ainda mais abominável que o estupro cruento por romper um acordo de confiança e cumplicidade. Para as mulheres que o vivenciaram, o reconhecimento do estupro na relação de intimidade, quando possível, ocorreu como processo.
Nos casos pesquisados, o processo de reconhecimento do estupro nas relações de intimidade pode ser compreendido a partir da elucidação das usuárias enquanto sujeitos de direito. Ao encontrarem formas de assegurar sua cidadania, sua segurança e a possibilidade de reconstruir as próprias vidas, elas puderam nomear e enfrentar a violência. É possível afirmar que o processo de reconhecimento – em qual âmbito for – deriva da resistência à objetificação e aos modos de opressão operantes. Ao produzir formas de subjetivação, a mulher redimensiona sua inserção na relação e assenhora-se do seu lugar de sujeito.
É surpreendente que o estupro em relações de intimidade ainda seja tão dificilmente reconhecido. No caso apresentado, a mulher só se mostrou capaz de nomear como estupro as investidas do companheiro após sofrer um estupro cruento, este mais facilmente nomeado como tal. Essa constatação sinaliza a importância de penetrar as relações de intimidade, enfatizando as violências que a intimidade ainda oculta.
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Notas
1. Psicóloga e mestranda em Psicologia no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Contato: fernanda.mm04@gmail.com
2. Professora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ e professora do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos do NEPP-DH/UFRJ. Contato: hebe@globo.com
3. O Centro de Referência de Mulheres da Maré – Carminha Rosa (CRMM-CR) é um equipamento da política para as mulheres e também um projeto de extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A instituição oferece atendimento psicossocial e jurídico, disponibiliza oficinas socioculturais e promove debates sobre direitos humanos, gênero, saúde da mulher, dentre outros.
4. No sentido adotado aqui, a expressão estupro cruento refere-se ao que Segato (1999, p.387) descreveu como o ato “realizado no anonimato das ruas, entre pessoas desconhecidas, anônimas (…), [assentado] na força ou na ameaça do uso da força”.
5. Este e todos os demais nomes próprios são fictícios.