Estupro nas relações de intimidade: uma violência invisível Descargar este archivo (3. Estupro nas relações de intimidade.pdf)

Fernanda Moreira de Menezes1 e Hebe Signorini Gonçalves2

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resu­mo

Este tra­balho bus­ca com­preen­der as apro­priações do con­cei­to de estu­pro por par­te das usuá­rias do Cen­tro de Refe­rên­cia de Mulhe­res da Maré – Car­minha Rosa (CRMM-CR). A inves­ti­gação se divi­de em três momen­tos: aná­li­se dos rela­tos regis­tra­dos no ban­co de dados do CRMM-CR, com recor­te nos anos de 2013 e 2014; entre­vis­tas semi­es­tru­tu­ra­das com oito usuá­rias do ser­viço; e apre­sen­tação de um caso de estu­pro aten­di­do pela auto­ra prin­ci­pal des­te tra­balho. A par­tir des­tes três ângu­los de aná­li­se, foi pos­sí­vel refle­tir sobre o con­cei­to de estu­pro rela­cio­nan­do com a lite­ra­tu­ra sobre o tema. A ques­tão de gêne­ro é um dos eixos da dis­cus­são, uma vez que os papéis tra­di­cio­nais de gêne­ro atra­ves­sam o modo como cul­tu­ral­men­te inter­pre­ta-se o ato sexual não con­sen­ti­do.

Pala­vras-cha­ves: Estu­pro; Vio­lên­cia Sexual; Gêne­ro.

Violación en las relaciones de intimidad: una violencia invisible

Resu­men

Este tra­ba­jo bus­ca com­pren­der las con­cep­cio­nes del tér­mino vio­la­ción por par­te de las usua­rias del Cen­tro de Refe­rên­cia de Mulhe­res da Maré – Car­minha Rosa (CRMM-CR). La inves­ti­ga­ción se divi­de en tres fases: aná­li­sis de los infor­mes regis­tra­dos en la base de datos del CRMM-CR, con recor­te en los años 2013 y 2014; entre­vis­tas semi­es­truc­tu­ra­das con ocho usua­rias del ser­vi­cio y la pre­sen­ta­ción de un caso de vio­la­ción aten­di­do por la auto­ra prin­ci­pal de este tra­ba­jo. A par­tir de estos cam­pos de aná­li­sis, fue posi­ble refle­xio­nar sobre el con­cep­to de vio­la­ción rela­cio­nán­do­lo con la lite­ra­tu­ra sobre el tema. La cues­tión de géne­ro es uno de los ejes de la dis­cu­sión, ya que los pape­les tra­di­cio­na­les de géne­ro atra­vie­san la inter­pre­ta­ción cul­tu­ral de los actos sexua­les no con­sen­ti­dos.

Pala­bras Cla­ve: vio­la­ción, vio­len­cia sexual, géne­ro.

Introdução

O obje­ti­vo des­te tra­balho é com­preen­der as apro­priações da noção de estu­pro por par­te das usuá­rias aten­di­das no Cen­tro de Refe­rên­cia de Mulhe­res da Maré – Car­minha Rosa (CRMM-CR)3. As obser­vações aqui apre­sen­ta­das resul­tam do tra­balho de con­clu­são da auto­ra prin­ci­pal no cur­so de Resi­dên­cia Mul­ti­dis­ci­pli­nar de Polí­ti­cas de Gêne­ro e Direi­tos Huma­nos, na Uni­ver­si­da­de Fede­ral do Rio de Janei­ro (UFRJ), sob orien­tação da segun­da auto­ra.

O coti­diano dos aten­di­men­tos no CRMM-CR per­mi­tiu ava­liar a difi­cul­da­de das mulhe­res em dis­cer­nir as vio­lên­cias vivi­das em suas relações de inti­mi­da­de, prin­ci­pal­men­te a vio­lên­cia sexual. Ain­da que as narra­ti­vas das usuá­rias apon­tas­sem para vio­lações mar­can­tes e con­tí­nuas pelos com­panhei­ros, o con­teú­do por elas narra­do ao lon­go dos diver­sos aten­di­men­tos não era reconhe­ci­do como vio­lên­cia.

Gran­de par­te dos estu­dos sobre o estu­pro enfa­ti­za sua oco­rrên­cia no espaço públi­co. A nota téc­ni­ca “Estu­pro no Bra­sil: uma radio­gra­fia segun­do os dados da saú­de” (2014), que ana­li­sa as esta­tís­ti­cas do Sis­te­ma de Infor­mações de Agra­vo de Noti­fi­cação do Minis­té­rio da Saú­de (SINAN), aler­ta para o fato de que só em 2011 as noti­fi­cações de vio­lên­cia sexual pas­sa­ram a ser obje­to de regis­tro sis­te­má­ti­co e padro­ni­za­do; como con­se­quên­cia, o país não dis­põe de séries his­tó­ri­cas que per­mi­tam aná­li­se de lon­go pra­zo. Com base nos dados dis­po­ní­veis, o docu­men­to indi­ca que as ten­ta­ti­vas de estu­pro ou os estu­pros con­su­ma­dos alca­nçam, por ano, cer­ca 527 mil casos no Bra­sil, e ape­nas 10% deles che­gam à polí­cia. Esse núme­ro redu­zi­do pode ser enten­di­do a par­tir do dis­cur­so das mulhe­res que sofre­ram o estu­pro, que anun­ciam com fre­quên­cia a ver­gonha em tor­ná-lo públi­co.

É pos­sí­vel, além dis­so, que elas receiem que sua denún­cia não rece­ba tra­ta­men­to ade­qua­do. Os movi­men­tos femi­nis­tas têm insis­ti­do na neces­si­da­de de apri­mo­rar o fun­cio­na­men­to das dele­ga­cias, inclu­si­ve as dele­ga­cias espe­cia­li­za­das, e estu­do do CFEMEA (2014) mos­tra que a vio­lên­cia ins­ti­tu­cio­nal no inte­rior dos apa­relhos esta­tais não cons­ti­tui novi­da­de. No rela­tó­rio final da Comis­são Par­la­men­tar Mis­ta de Inqué­ri­to (CPMI) sobre a vio­lên­cia con­tra as mulhe­res, as dele­ga­cias do Rio de Janei­ro são cri­ti­ca­das pelos “cons­tan­tes des­res­pei­tos a mulhe­res duran­te os aten­di­men­tos (…), como por exem­plo, (…) no regis­tro da quei­xa são aler­ta­das pelos agen­tes de que se não com­pro­va­rem os fatos serão pro­ces­sa­das, em uma fala inti­mi­da­do­ra e que con­tri­bui para que a mulher desis­ta da ação” (BRASIL, 2013, p. 622).

Ape­sar dis­so, é pos­sí­vel afir­mar a alta inci­dên­cia do estu­pro por com­panhei­ros. Em 2015, no esta­do do Rio de Janei­ro, as for­mas mais fre­quen­tes de vio­lên­cia sexual foram o deli­to de estu­pro (4.128 mulhe­res) ou ten­ta­ti­va de estu­pro (484 mulhe­res). Des­se total, 1.465 mulhe­res (cer­ca de 32%) tinham relação de pro­xi­mi­da­de com o autor da agres­são (ISP, 2016).

Dado que as esta­tís­ti­cas são recen­tes, e que o núme­ro de denún­cias é pro­va­vel­men­te redu­zi­do em razão de difi­cul­da­des espe­cí­fi­cas das mulhe­res que sofrem vio­lên­cia sexual, os estu­dos qua­li­ta­ti­vos são valio­sos, pois podem lançar luz sobre as espe­ci­fi­ci­da­des do fenô­meno do estu­pro no país. Assim, a reali­da­de das mulhe­res que bus­cam o CRMM-CR ser­viu como pla­ta­for­ma de aná­li­se na ten­ta­ti­va de com­preen­der a invi­si­bi­li­da­de dos casos e das denún­cias de estu­pro nas relações de inti­mi­da­de. Foram rea­li­za­das entre­vis­tas semi­es­tru­tu­ra­das com oito mulhe­res que fazem uso do ser­viço con­ti­nua­men­te. Os rela­tos dos aten­di­men­tos dos anos de 2013 e 2014, regis­tra­dos no ban­co de dados do CRMM-CR, com­ple­men­ta­ram a sis­te­ma­ti­zação das infor­mações. Como ter­cei­ra fren­te de aná­li­se, apre­sen­ta­mos a refle­xão sobre um caso de estu­pro aten­di­do duran­te cin­co meses pela auto­ra prin­ci­pal des­te tra­balho.

Assim, o foco do pre­sen­te estu­do é o estu­pro nas relações de inti­mi­da­de; ao ana­li­sar as diver­sas com­preen­sões da noção des­sa moda­li­da­de de estu­pro para as usuá­rias, pre­ten­de­mos exa­mi­nar a ausên­cia de dados no que se refe­re ao fenô­meno, o que em cer­ta medi­da con­tri­bui para sua invi­si­bi­li­da­de. Como con­tra­pon­to, epi­só­dios de estu­pro cruen­to4 – tra­zi­dos pelas entre­vis­ta­das e reti­ra­dos dos rela­tos dos aten­di­men­tos – serão apre­sen­ta­dos para que suas carac­te­rís­ti­cas e espe­ci­fi­ci­da­des pos­sam cola­bo­rar na aná­li­se.

Produção histórica do estupro e o gênero como analisador

A valo­ração do estu­pro como vio­lação é tra­balha­da por Viga­re­llo (1998), que ana­li­sa os casos oco­rri­dos na Fra­nça entre os sécu­los XVI e XX. O autor mos­tra que a vio­lên­cia sexual foi enfren­ta­da de manei­ras dis­tin­tas no perío­do e que a pró­pria defi­nição jurí­di­ca de estu­pro incor­po­rou suces­si­va­men­te essas trans­for­mações. Para ele, o con­cei­to de estu­pro dia­lo­ga com um con­jun­to de trans­for­mações his­tó­ri­cas, sociais e jurí­di­cas: no cam­po social, ele conec­ta a cons­trução da noção de estu­pro à emer­gên­cia dos con­cei­tos de sujei­to e de pri­va­ci­da­de, afir­man­do que “ela [a pri­va­ci­da­de] é dire­ta­men­te para­le­la à his­tó­ria da sen­si­bi­li­da­de, que tole­ra ou rejei­ta o ato bru­tal” (p. 13). Os des­fe­chos dos casos de estu­pro ana­li­sa­dos deco­rriam da sus­ce­ti­bi­li­da­de dos envol­vi­dos – juí­zes, opi­nião públi­ca e popu­lação em geral – à vio­lên­cia do ato, ora o repu­dian­do, ora o con­sen­tin­do.

Para Viga­re­llo (1998), as muda­nças jurí­di­cas, sociais e cul­tu­rais não logra­ram eli­mi­nar os estig­mas sobre a víti­ma de estu­pro. A força dos cos­tu­mes resis­te e per­ma­ne­ce influen­cian­do as for­mas de abor­dar o tema. O autor afir­ma que “esses limi­tes con­fir­mam a manu­te­nção da domi­nação sobre a mulher, a exis­tên­cia de um jul­ga­men­to logo de saí­da inigua­li­tá­rio, a esta­bi­li­da­de rela­ti­va dos cos­tu­mes, ape­sar da inegá­vel muda­nça da juris­pru­dên­cia e da lei” (p. 247). Des­sa for­ma, as invi­si­bi­li­da­des que per­meiam esta temá­ti­ca estão vin­cu­la­das às prá­ti­cas sociais que reafir­mam a lógi­ca de cul­pa­bi­li­zação da víti­ma.

No Bra­sil, os estig­mas em torno da mulher se asse­melham ao cená­rio fran­cês des­cri­to por Viga­re­llo (1998), o que é com­preen­sí­vel já que tan­to o mode­lo legal quan­to as prá­ti­cas jurí­di­cas bra­si­lei­ras sofre­ram for­te influên­cia do posi­ti­vis­mo euro­peu. Kol­ker (2009) assi­na­la que “é no Códi­go Penal de 1940, ins­pi­ra­do no Códi­go Ita­liano de 1930, que ver­da­dei­ra­men­te se pode ver a força da influên­cia posi­ti­vis­ta” (p. 190). De fato, ali se per­ce­be que a ordem e o con­tro­le social são o bem maior a ser pre­ser­va­do, inclu­si­ve no que diz res­pei­to à orga­ni­zação moral das relações entre os sexos.

A hie­rar­quia de gêne­ro e o patriar­ca­do sus­ten­tam-se em prá­ti­cas jurí­di­cas que man­têm o domí­nio mas­cu­lino sobre a mulher. A exem­plo, no Códi­go Penal de 1940, os cri­mes sexuais esta­vam reu­ni­dos sob o títu­lo “Dos Cri­mes Con­tra dos Cos­tu­mes”. A escolha da expres­são “cos­tu­mes” indi­ca que a legis­lação não pri­vi­le­gia­va a pro­teção da mulher e sua liber­da­de sexual; a ordem social, refle­tin­do o pudor cole­ti­vo e a mora­li­da­de públi­ca, era o obje­to de tute­la. A pro­teção da víti­ma e os efei­tos físi­cos e psí­qui­cos sofri­dos por ela não eram pon­de­ra­dos, pois o estu­pro era enten­di­do como uma ofen­sa à famí­lia (SEGATO, 1999; VIGARELLO, 1998).

Nes­sa lógi­ca, o estu­pro per­pe­tra­do por par­cei­ros ínti­mos sequer era con­si­de­ra­do, vis­to que a noção de “débi­to con­ju­gal” – pre­sen­te no Códi­go Penal de 1940, influen­cia­do pelo Códi­go Civil de 1916 – atri­buía à mulher o cum­pri­men­to de todas as obri­gações con­ju­gais e a recu­sa sexual era con­si­de­ra­da uma dívi­da pas­sí­vel de ser cobra­da a qual­quer tem­po e a qual­quer cus­to.

Na lei 12.015/09, que alte­rou o Códi­go Penal, o estu­pro pas­sa a ser defi­ni­do como “cons­tran­ger alguém, median­te vio­lên­cia ou gra­ve ameaça, a ter con­ju­nção car­nal ou a pra­ti­car ou per­mi­tir que com ele se pra­ti­que outro ato libi­di­no­so”, absor­ven­do a con­du­ta do revo­ga­do deli­to de aten­ta­do vio­len­to ao pudor. Con­tu­do, a muda­nça mais rele­van­te está na alte­ração do títu­lo em que o arti­go 213 está inse­ri­do, que pas­sa a inti­tu­lar-se “Dos Cri­mes Con­tra a Liber­da­de Sexual”.

O con­cei­to jurí­di­co de liber­da­de sexual sig­ni­fi­ca que o titu­lar da mes­ma deter­mi­na seu com­por­ta­men­to sexual con­for­me moti­vos que lhe são pró­prios no sen­ti­do de que é ele quem deci­de sobre sua sexua­li­da­de, sobre como, quan­do ou com quem man­tém relações sexuais (JIMÉNEZ, 2003 apud GRECO, 2010, p.452). A subs­ti­tuição da expres­são “cos­tu­mes” para “liber­da­de sexual” é uma muda­nça para­dig­má­ti­ca e não ape­nas uma alte­ração na ter­mi­no­lo­gia. A liber­da­de sexual se tor­na o bem jurí­di­co pro­te­gi­do no cri­me de estu­pro. O tex­to legal sofreu uma alte­ração cujo valor sim­bó­li­co é deter­mi­nan­te ten­do em vis­ta o pro­ta­go­nis­mo dado à liber­da­de sexual.

Ain­da que emble­má­ti­cas, essas trans­for­mações nos códi­gos legais não alca­nça­ram a moral vigen­te. Ana­li­san­do as con­ce­pções anun­cia­das por homens auto­res de estu­pro, Macha­do (1999) assi­na­la a exis­tên­cia de “dois códi­gos de mora­li­da­de – o indi­vi­dua­lis­mo de direi­tos e o códi­go rela­cio­nal da hon­ra” (p. 298). A noção de estu­pro se tor­na pola­ri­za­da, ora tra­ta­da como con­du­ta ver­gonho­sa dos homens, ora estig­ma­ti­zan­do as mulhe­res, con­ver­ten­do-as em imo­rais. A dife­re­nça de gêne­ro, apon­ta­da por Macha­do (1999) no dis­cur­so dos agres­so­res, demons­tra a per­ma­nên­cia de estig­mas de gêne­ro nos dis­cur­sos dos sujei­tos.

Seguin­do esta linha, Pate­man (1993, apud SEGATO, 1999) rela­cio­na o estu­pro e as relações de gêne­ro atra­vés das con­ce­pções de socie­da­de con­tra­tual e da lei do sta­tus. A auto­ra defi­ne o estu­pro como “o ato de força ori­gi­ná­rio, ins­ti­tuin­te da pri­mei­ra lei, do fun­da­men­to da ordem social” (p. 397). Con­tra­rian­do pen­sa­do­res como Freud e Lacan, Pate­man assi­na­la que não é o inces­to que fun­da a pri­mei­ra lei, mas sim o estu­pro. A pri­mei­ra lei é a lei do sta­tus que demons­tra o poder e domí­nio sobre os outros. No con­tex­to da cena pri­me­va, o pai da hor­da assenho­ra-se das mulhe­res dos outros homens e seu assas­si­na­to ins­cre­ve o prin­cí­pio de um con­tra­to de direi­tos, no qual os homens con­fir­mam reci­pro­ca­men­te seus direi­tos.

Na inter­pre­tação de Sega­to (1999), o estu­pro reve­la a vul­ne­ra­bi­li­da­de do con­tra­to no que se refe­re às relações de gêne­ro. A inca­pa­ci­da­de do con­tra­to de inter­me­diar as relações demons­tra a pre­se­nça da orga­ni­zação cul­tu­ral hie­rár­qui­ca que exce­de os pos­tu­la­dos jurí­di­cos. A des­igual­da­de entre os gêne­ros é ante­rior à fun­dação da pri­mei­ra lei e a lei do sta­tus ante­ce­de o con­tra­to entre os homens. A ela­bo­ração do con­tra­to pre­vê a segu­ra­nça e a con­ser­vação do sta­tus mas­cu­lino, basea­da em um códi­go pré­vio em que a mulher era obje­ti­fi­ca­da. A par­tir da com­po­sição con­tra­tual entre pares mas­cu­li­nos, a mulher “pas­sa a ser pro­te­gi­da como par­te do domí­nio de um homem par­ti­ci­pan­te des­te con­tra­to, ou seja, o sis­te­ma de sta­tus per­sis­te, ati­vo, no inte­rior do sis­te­ma de con­tra­to” (p. 398). A moder­ni­da­de pro­mo­ve a par­ti­ci­pação ati­va da mulher; no entan­to, “a estru­tu­ra de gêne­ro nun­ca pas­sa a ser intei­ra­men­te con­tra­tual, sen­do o sta­tus o seu regi­men­to per­ma­nen­te” (PATEMAN, 1993 apud SEGATO, 1999, p. 399).

Nes­se sen­ti­do, o estu­pro para Sega­to (1999) é qual­quer for­ma de sexo força­do por um indi­ví­duo com poder de mor­te sobre o outro (…) o uso e o abu­so do cor­po do outro, sem que o outro par­ti­ci­pe com inte­nção ou envol­vi­men­to com­pa­tí­vel(p. 388). A noção jurí­di­ca de estu­pro e a defi­nição aci­ma men­cio­na­da con­tri­buí­ram para a ela­bo­ração do ins­tru­men­to uti­li­za­do nas entre­vis­tas rea­li­za­das com as usuá­rias do CRMM-CR, e duran­te a aná­li­se do mate­rial reu­ni­do na pes­qui­sa ser­vin­do como nor­tea­do­res para a refle­xão, espe­cial­men­te devi­do à com­preen­são gené­ri­ca das entre­vis­ta­das e das usuá­rias sobre os ter­mos estu­pro, vio­lên­cia sexual e cri­me sexual.

Percurso Metodológico

Ini­cial­men­te, a pes­qui­sa teve como foco os rela­tos dos anos de 2013 e 2014. No pri­mei­ro ano, 228 usuá­rias foram aten­di­das, e em 2014 foram 278 mulhe­res. Den­tro des­te recor­te, foram encon­tra­dos 35 casos sobre a temá­ti­ca pes­qui­sa­da, con­ten­do diver­sas expres­sões: estu­pro nas relações de inti­mi­da­de, estu­pro cruen­to, abu­so sexual infan­til. Os 35 rela­tos sele­cio­na­dos auxi­lia­ram no refi­na­men­to das ques­tões a serem pes­qui­sa­das.

Foram rea­li­za­das entre­vis­tas semi­es­tru­tu­ra­das com 8 mulhe­res, cujas ida­des variam dos 30 aos 65 anos. As entre­vis­ta­das par­ti­ci­pa­ram em cará­ter volun­tá­rio e con­sen­ti­ram com a gra­vação em áudio. Das 8 entre­vis­ta­das, duas foram víti­mas de vio­lên­cia sexual em algum momen­to da vida, e as demais tive­ram con­ta­to pró­xi­mo com a vio­lên­cia atra­vés de ami­gas ou paren­tes.

Como ele­men­to adi­cio­nal de aná­li­se, apre­sen­ta­mos o caso de estu­pro cruen­to, viven­cia­do por Bian­ca5 e aten­di­do por uma assis­ten­te social e pela auto­ra prin­ci­pal des­te tra­balho duran­te cin­co meses (13 encon­tros). Recor­tes dos regis­tros des­se aten­di­men­to serão tra­zi­dos ao lon­go da aná­li­se dos dados. A his­tó­ria de Bian­ca será con­ta­da atra­vés dos recor­tes para que, ao final da expo­sição das cate­go­rias de aná­li­se, a refle­xão sobre seu caso pos­sa ser toma­da de modo mais con­sis­ten­te. Este caso será uti­li­za­do por apre­sen­tar com mais detalhes a flui­dez do con­cei­to de estu­pro, a par­tir da pers­pec­ti­va de Bian­ca.

Para ana­li­sar e cate­go­ri­zar o mate­rial cole­ta­do, o méto­do uti­li­za­do foi a aná­li­se de con­teú­do (BARDIN, 1977). Foram ela­bo­ra­das qua­tro cate­go­rias de aná­li­se, tra­ta­das a seguir.

Definindo a partir das experiências

O escu­do moral que impe­de a ver­ba­li­zação de temá­ti­cas sexuais con­tri­bui para que o enten­di­men­to da vio­lên­cia sexual se tor­ne ain­da mais obs­cu­ro. É pos­sí­vel que o não reconhe­ci­men­to de situações de estu­pro nas relações de inti­mi­da­de seja atra­ves­sa­do por essa difi­cul­da­de (SUÁREZ et al, 1999). O mate­rial reu­ni­do indi­cou que as mulhe­res, em sua maio­ria, defi­ni­ram o estu­pro atra­vés de his­tó­rias vivi­das ou de narra­ti­vas de conhe­ci­dos: suas expe­riên­cias ante­ce­dem a con­cei­tuação da vio­lên­cia. O estu­pro cruen­to foi a moda­li­da­de mais refe­ri­da nas entre­vis­tas. Por essa razão, os casos de estu­pro per­pe­tra­dos por des­conhe­ci­dos tam­bém serão des­cri­tos ten­do em vis­ta o enri­que­ci­men­to da dis­cus­são.

“O meu caso foi eu mes­ma, eu mes­ma. Eu com 16 anos, assim, 15… eu nun­ca tinha bei­ja­do (…) Aí um dia eu tava indo pra igre­ja, jun­tou ele [o melhor ami­go da esco­la] e mais 3 ami­gos dele. (…) Aí quan­do che­gou no meio do caminho ele falou assim ‘Ago­ra eu que­ro ver se você é vir­gem mes­mo’. (…) Aí tá, quan­do eu pen­so que não aí vem che­gan­do os meni­nos, aí me aga­rra­ram assim, aí ele foi me abu­sou” (Entre­vis­ta Caro­li­na, 2014).

Entre o privado e o público

Ao com­pa­rar o estu­pro cruen­to àque­le que oco­rre em relações de inti­mi­da­de, a maio­ria das entre­vis­ta­das acre­di­ta que o segun­do é mui­to mais dolo­ro­so devi­do à rup­tu­ra da con­fia­nça envol­vi­da na relação de afe­to. A dece­pção, o desejo de ser pro­te­gi­da e o sen­ti­men­to de traição são alguns dos efei­tos des­te ato. O estu­pro cruen­to che­ga a ser “com­preen­sí­vel”, se com­pa­ra­do ao per­pe­tra­do pelo com­panhei­ro:

“Eu acho mais horrí­vel por ser conhe­ci­do. Quan­do é um des­conhe­ci­do, eu acho é mau, é horrí­vel, mas por ser conhe­ci­do eu acho que é onde você pen­sa que tá pro­te­gi­da e você não tá, pra mim isso é uma mons­truo­si­da­de. (…) O que estu­pra den­tro de casa tem um rela­cio­na­men­to, conhe­ce a famí­lia, tem que ter (…) algum sen­ti­men­to na cabeça des­se homem que faz uma coi­sa des­sa, tem um conhe­ci­men­to. E o que tá fora é um absur­do tam­bém (…)” (Entre­vis­ta Clau­dia, 2014). 

A relação sexual não con­sen­ti­da pela mulher, den­tro da relação de inti­mi­da­de, tem como efei­to o aumen­to das agres­sões físi­cas (DANTAS-BERGER e GIFFIN, 2005). Estas pos­si­vel­men­te já oco­rriam antes em menor esca­la e, para ten­tar fazer ces­sar as agres­sões e acu­sações, a mulher cede. A clás­si­ca cre­nça de débi­to con­ju­gal é res­ga­ta­da já que as obri­gações sexuais no casa­men­to deve­riam ser pagas. Além dis­so, os filhos do casal se tor­nam alvos dire­tos ou indi­re­tos da vio­lên­cia.

“Bian­ca esta­va se arru­man­do para ir ao tra­balho quan­do o mari­do a pegou por trás e a jogou na cama. Ele já esta­va sem rou­pa e ten­ta­va tirar a dela. Ela pediu que ele não fizes­se nada e que a sol­tas­se. Ele dizia que não sol­ta­ria (…). O filho do casal [1 ano e 8 meses] acom­panhou toda esta cena e pedia para o pai parar (…) Por fim, Bian­ca con­se­guiu arranhá-lo nas cos­tas e se sol­tou dele. Em segui­da, o mari­do ficou extre­ma­men­te ner­vo­so (…) Jogou todos os obje­tos pes­soais de Bian­ca no chão e dis­se que ela não entra­ria mais em casa, pois ela não esta­va cum­prin­do com as suas obri­gações” (Aten­di­men­to Bian­ca, 2014).

Tan­to Clau­dia quan­to Bian­ca rela­tam os epi­só­dios sem nomeá-los como estu­pro ou ten­ta­ti­va de estu­pro; do mes­mo modo, a aná­li­se dos 35 rela­tos regis­tra­dos no ban­co de dados evi­den­ciou que as situações de vio­lên­cia sexual não foram reconhe­ci­das pelas usuá­rias como uma for­ma de vio­lação. O enten­di­men­to de que a relação sexual é um dever con­ju­gal, o des­conhe­ci­men­to de casos simi­la­res, a fal­ta de infor­mação para bus­car um ser­viço espe­cia­li­za­do e a edu­cação rece­bi­da na infân­cia são algu­mas pis­tas para com­preen­der o não reconhe­ci­men­to do estu­pro no inte­rior das relações ínti­mas.

“(…) eu sofria vio­lên­cia por­que eu pen­sa­va que era só comi­go tam­bém. (…) Eu sen­tia assim: ‘ah é comi­go’, eu não tinha o direi­to de falar. Era isso que se pas­sa­va na minha cabeça. Por­que eu venho assim duns pais que me ensi­na­ram assim que eu tinha que ficar cala­da, assim uma criação, nem eles era cul­pa­do e assim um pou­co cala­da, não falar mui­ta coi­sa, enten­deu?” (Entre­vis­ta Clau­dia, 2014).

Efeitos do Estupro

O ato sexual não con­sen­ti­do, seja ele na rua ou no ambien­te domés­ti­co, pro­vo­ca muda­nças tan­to no con­ví­vio social quan­to na per­ce­pção da víti­ma sobre o pró­prio cor­po. Na ten­ta­ti­va de apa­gar tais muda­nças, as víti­mas execu­tam “rituais de puri­fi­cação [que] pare­cem ter pou­ca efi­cá­cia para dis­sol­ver a mar­ca cor­po­ral do estu­pro por­que é a mar­ca da ‘alma’, (…) a mar­ca é pro­fun­da e ins­cre­ve-se na cons­trução da sub­je­ti­vi­da­de” (MACHADO, 1999, p. 303).

“Ela se mos­tra mui­to apreen­si­va sobre a pos­si­bi­li­da­de de con­ta­mi­nação (…) con­tou que a gine­co­lo­gis­ta do IML lhe dis­se que se o agres­sor [do estu­pro cruen­to] tiver algu­ma doe­nça, a chan­ce de con­tá­gio é de 75%. (…) Ela diz que não sabe como se sen­te exata­men­te, mas que é ‘impró­pria’ para ficar com ele [o mari­do], pois está ‘suja e doen­te’ [e] sen­te como se tives­se algo de ruim den­tro dela. Dis­se que a sus­pei­ta de que o agres­sor tem a doe­nça [HIV] foi con­fir­ma­da atra­vés dos exames fei­tos na oca­sião de sua pri­são” (Aten­di­men­to Bian­ca, 2014).

Além dis­so, deco­rrên­cias psi­co­ló­gi­cas como fobias, des­con­fia­nça dos homens, des­pra­zer ou des­pre­zo pelo sexo, desâ­ni­mo com a vida, infan­ti­li­zação, depres­são, sín­dro­me do pâni­co, pro­jeção dos medos nos filhos foram alguns dos efei­tos rela­ta­dos pelas usuá­rias. “É sem­pre assim, é… foi sen­do assim, uns 10 anos assim, à força, força­do. Por­que eu não gos­ta­va até que eu fiquei com nojo do sexo” (Entre­vis­ta Clau­dia, 2014).

O apoio fami­liar e social é fun­da­men­tal para enfren­tar uma situação de estu­pro, tenha ele oco­rri­do na relação de inti­mi­da­de ou no ano­ni­ma­to das ruas. A impor­tân­cia de uma estru­tu­ra de apoio é cita­da pelas entre­vis­ta­das em pes­qui­sa rea­li­za­da por Sudá­rio et al (2005, p. 84). Para as auto­ras, as influên­cias “nas mani­fes­tações e no grau dos danos cau­sa­dos àque­la viti­ma­da pelo estu­pro, inde­pen­den­te da vio­lên­cia do pró­prio ata­que”, estão vin­cu­la­das à dis­po­ni­bi­li­zação des­sa estru­tu­ra de apoio.

Des­sa for­ma, o con­tex­to pós-estu­pro pode for­ta­le­cer os víncu­los fami­lia­res, enco­ra­jan­do a mulher no enfren­ta­men­to des­ta oco­rrên­cia. Na direção opos­ta, as reações nega­ti­vas pro­vo­cam o afas­ta­men­to da famí­lia, a negação do ato e a punição por não ser “mais hon­ra­da”, sen­ti­dos deri­va­dos dos este­reó­ti­pos e estig­mas que envol­vem o estu­pro. 

“[Depois do estu­pro] Proibi­riam as minhas pri­mas, (…) nenhu­ma fala­va comi­go mais (…) Eu fiquei como uma estranha, a úni­ca pes­soa que con­ti­nuou falan­do comi­go foi meus irmãos mes­mo e os meus paren­tes por par­te de mãe. Nem meu pai. (…) quan­do meu filho nas­ceu, (…) Meu pai falou assim, (…) ‘eu não tenho nem filha, quan­to mais neto’. Bem assim, meu pai falou comi­go” (Entre­vis­ta Caro­li­na, 2014).

Quan­do o estu­pro resul­ta em gra­vi­dez, exi­ge da mulher escolhas extre­ma­men­te com­ple­xas que vão do abor­to à manu­te­nção da ges­tação, esta even­tual­men­te atra­ves­sa­da pela repul­sa ao bebê, seja ela mani­fes­ta ou não. Nos casos de estu­pro na relação de inti­mi­da­de, a des­con­fia­nça e ausên­cia de apoio do par­cei­ro agra­va­ram a situação.

(…) Ai eu fiquei grá­vi­da por um ato que foi vio­len­ta­do, aí depois quan­do meu filho nas­ceu ele [mari­do] che­gou falou que o filho não era dele (…). É tan­to que quan­do eu tava grá­vi­da assim de oito meses, ele me deu um chu­te assim pra eu per­der o meu neném. (…) por­que eu não que­ria filho, (…) Dava soco na barri­ga (…) Por cau­sa que eu fica­va com nojo por con­ta dis­so, que ele foi con­ce­bi­do assim. (Entre­vis­ta Clau­dia, 2014).

Culpabilização: de si mesma, pela família, pelos conhecidos e desconhecidos

Algu­mas entre­vis­ta­das, den­tre as que não se decla­ra­ram víti­mas de estu­pro, cul­pa­bi­li­za­ram a mulher por ser vio­la­da; para elas, o com­por­ta­men­to e a ves­ti­men­ta seriam for­mas visí­veis de auto­ri­zação do estu­pro. “Se eu não que­ro ser agre­di­da por­que eu vou botar um brin­co de ouro que eu sei que a gen­te não pode mais sair na rua com brin­co de ouro, eu boto pra que? Tô cha­man­do ladrão, né? Se eu saio pela­da, tô cha­man­do o que? Homem!” (Entre­vis­ta Mar­cia, 2014).

Nos casos que resul­ta­ram em gra­vi­dez, a cul­pa esta­va anco­ra­da na não acei­tação da cria­nça e nas falhas nos cui­da­dos ini­ciais do filho. “É cul­pa, por­que ele não foi ama­men­ta­do, ele não foi, ele não teve todo aque­le amor que toda mãe olha pro seu filho quan­do nas­ce” (Entre­vis­ta Caro­li­na, 2014). Lor­de­llo e Cos­ta (2014) escre­vem que, “quan­do deci­dem ter o filho, as mulhe­res se veem dian­te de um duplo des­afio: pre­pa­ra­rem-se para a mater­na­gem e mini­mi­zar os efei­tos das pro­jeções nas quais os filhos podem se tor­nar depo­si­tá­rios da vio­lên­cia sofri­da, perpetuando‑a por meio da trans­mis­são gera­cio­nal” (p. 97).

Ade­mais, algu­mas mulhe­res rela­ta­ram epi­só­dios de vio­lên­cia ins­ti­tu­cio­nal ao bus­car a polí­cia. A des­qua­li­fi­cação do rela­to da mulher por agen­tes do Esta­do a leva a ques­tio­nar a vali­da­de da denún­cia jun­to às dele­ga­cias poli­ciais.

“Eu che­guei pro dele­ga­do e falei assim que ele [o mari­do] tava ameaçan­do meu filho de mor­te, que eu se eu ficas­se em casa ele ia matar eu e meu filho (…) então eu falei tudo isso pro dele­ga­do que eu tava can­sa­da de apanhar, de meus filhos sofrer. Aí o dele­ga­do ain­da falou assim: ‘não, isso é por cau­sa da dro­ga, não dá quei­xa de seu mari­do não por­que seu mari­do vai ficar ficha­do e aí você depois vai vol­tar pra ele, vai se arre­pen­der, dá mais uma chan­ce pra ele’. E aí eu vi aqui­lo ali, o dele­ga­do falar isso, eu me sen­ti, eu falei: ‘caram­ba, eu que tô erra­da de tá aqui’” (Entre­vis­ta Clau­dia, 2014).

As múl­ti­plas for­mas de cul­pa­bi­li­zação pare­cem estar inti­ma­men­te rela­cio­na­das à moral. O tra­ta­men­to que a víti­ma de estu­pro rece­be de alguns fami­lia­res, das ins­tân­cias jurí­di­cas e das pró­prias mulhe­res é uma das hera­nças da estru­tu­ra patriar­cal.

Quando a ressignificação se torna uma possibilidade

Em razão do acom­panha­men­to do pro­ces­so de res­sig­ni­fi­cação da noção de estu­pro, escolhe­mos des­ta­car o caso de Bian­ca e apre­sen­tá-lo sepa­ra­da­men­te. Por ter viven­cia­do as duas for­mas de estu­pro e os efei­tos de cada uma, tor­na­ram-se evi­den­tes em seu dis­cur­so os sig­ni­fi­ca­dos dis­tin­tos e as inter­fe­rên­cias mútuas das vio­lên­cias sofri­das. O enca­minha­men­to para aten­di­men­to no CRMM-CR oco­rreu em função da per­pe­tração do estu­pro cruen­to. A par­tir des­te epi­só­dio, Bian­ca rela­ta que sua vida mudou: as for­mas de se rela­cio­nar e exis­tir no mun­do foram afe­ta­das. O trau­ma sub­se­quen­te ao ato fez com que as ati­vi­da­des diá­rias fos­sem inter­rom­pi­das: pediu demis­são no tra­balho; afas­tou-se da facul­da­de por algum tem­po; e man­te­ve dis­tân­cia do filho devi­do ao ris­co de con­tá­gio do vírus HIV. Sudá­rio et al (2005) escre­vem sobre as emoções pos­te­rio­res ao estu­pro: “o medo foi um dos sen­ti­men­tos mais pre­do­mi­nan­tes ins­ta­la­dos nas víti­mas. Entre eles des­ta­cam-se: ter adqui­ri­do o vírus HIV; reen­con­trar o estu­pra­dor; sair de casa; ficar sozinha e con­tar o fato aos fami­lia­res e par­cei­ro” (p. 83).

A relação con­ju­gal tor­nou-se um dos obje­tos cen­trais de sua fala. O con­tex­to con­ju­gal ante­rior ao estu­pro cruen­to incluía diver­sas traições do mari­do des­co­ber­tas por ela; situações de vio­lên­cia físi­ca, ver­bal e psi­co­ló­gi­ca duran­te o rela­cio­na­men­to, sem anun­ciá-las como agres­sões; ten­ta­ti­vas de sexo não con­sen­sual tam­bém foram des­cri­tas sem que fos­sem nomea­das como estu­pro ou vio­lên­cia.

Ape­sar dos sen­ti­men­tos nega­ti­vos eli­cia­dos pelo estu­pro cruen­to, Bian­ca per­mi­tiu a apro­xi­mação e o retorno do mari­do para a sua vida. No entan­to, pou­co após a oco­rrên­cia do estu­pro cruen­to, o mari­do já não apre­sen­ta­va a soli­da­rie­da­de dos pri­mei­ros momen­tos, pas­san­do a des­con­fiar de Bian­ca por con­ta da sua recu­sa sexual. As cobra­nças da avó e da mãe a com­pe­liam a man­ter os laços con­ju­gais, refo­rçan­do papéis clás­si­cos de gêne­ro.

Para Timm, Perei­ra e Gon­ti­jo (2011), a pro­dução de carac­te­rís­ti­cas rígi­das e estig­ma­ti­zan­tes oca­sio­nam as difi­cul­da­des psi­co­ló­gi­cas, que são sus­ten­ta­das pelo medo e inse­gu­ra­nça envol­vi­dos na rup­tu­ra dos valo­res tra­di­cio­nais sociais cris­ta­li­za­dos. As auto­ras apon­tam que “a uni­ver­sa­li­zação e a natu­ra­li­zação dos papéis de gêne­ro (…) atri­buí­ram às mulhe­res um lugar sim­bó­li­co de resig­nação, res­pon­sa­bi­li­da­de sobre (…) a filiação e a mater­ni­da­de, e de inves­ti­men­to per­ma­nen­te para se faze­rem (…) atraen­tes ao olhar de um homem (2011, p. 254).

Con­fron­tan­do-se com a rigi­dez dos papéis tra­di­cio­nais de gêne­ro, Bian­ca deu iní­cio a um pro­ces­so de refle­xão sobre sua relação com os fami­lia­res, prin­ci­pal­men­te o mari­do. Este, ques­tio­na­do, con­fir­mou as expec­ta­ti­vas da relação con­ju­gal e mos­trou-se agres­si­vo dian­te do que enten­dia como ameaça da mulher ao papel mas­cu­lino e, em segui­da, ten­tou estu­prá-la usan­do ameaças e força físi­ca.

Macha­do escre­ve: “(…) é no con­tra­to con­ju­gal que [os homens] bus­cam o sen­ti­do de seus atos vio­len­tos: são con­si­de­ra­dos atos ‘corre­ti­vos’” (2001, p. 10). A correção esta­ria anco­ra­da na repro­dução de uma con­du­ta femi­ni­na idea­li­za­da. A auto­ra apon­ta que no códi­go rela­cio­nal da hon­ra, a função de pro­ve­dor mas­cu­lino é equi­va­len­te à fide­li­da­de sexual da mulher. Sob esse pon­to de vis­ta, ao negar o ato sexual, Bian­ca esta­ria des­cum­prin­do sua par­te no acor­do mari­tal, em nome do qual o mari­do esta­ria auto­ri­za­do a usar seu poder de corri­gir.  Foi a par­tir do epi­só­dio de coação sexual pelo par­cei­ro que Bian­ca reconhe­ceu as semelha­nças entre o estu­pro cruen­to e as relações sexuais no espaço con­ju­gal. A con­fir­mação do iní­cio de um pro­ces­so de res­sig­ni­fi­cação da noção de estu­pro teve lugar quan­do a usuá­ria soli­ci­tou ao com­panhei­ro que bus­cas­se no dicio­ná­rio o sig­ni­fi­ca­do de estu­pro, dei­xan­do cla­ro que qual­quer relação sexual não con­sen­sual seria con­si­de­ra­da, por ela, uma vio­lên­cia. 

Aven­ta­mos a pos­si­bi­li­da­de de que Bian­ca tenha se apro­xi­ma­do da posição de sujei­to do não. Para Dan­tas-Ber­ger e Gif­fin (2005), a expres­são sujei­to do não repre­sen­ta a rejeição da mulher à con­dição de obje­to sexual, expri­min­do sua recu­sa ao ato sexual não con­sen­ti­do e exer­cen­do um ato de con­tra­po­der que tor­na paten­tes as frus­tações e desilu­sões deco­rren­tes do estu­pro per­pe­tra­do por par­cei­ro ínti­mo. Dan­tas-Ber­ger e Gif­fin (2005) mos­tram que a con­ce­pção femi­ni­na de sujei­to sexual com­preen­de a sexua­li­da­de para além da relação geni­tal e, nes­te sen­ti­do, é pos­sí­vel afir­mar que Bian­ca alca­nçou o lugar de sujei­to do não ao negar a sua sub­mis­são incon­di­cio­nal à von­ta­de sexual do côn­ju­ge. Ao repe­lir o ato não-deseja­do, a usuá­ria inau­gu­ra um caminho que pode con­du­zi-la ao reconhe­ci­men­to e à con­si­de­ração dos pró­prios desejos. 

Considerações Finais

O pro­pó­si­to ini­cial do tra­balho com­preen­dia a apreen­são dos sen­ti­dos atri­buí­dos pelas usuá­rias do CRMM-CR ao fenô­meno do estu­pro. No deco­rrer das entre­vis­tas, casos de estu­pro cruen­to e de estu­pro nas relações de inti­mi­da­de foram tra­zi­dos e dis­cu­ti­dos, e mui­tos des­ses dis­cur­sos mos­tram que a com­preen­são do estu­pro toma como refe­rên­cia os casos oco­rri­dos na rua, que pare­cem mais facil­men­te iden­ti­fi­cá­veis e pas­sí­veis de nomear como estu­pro; a hie­rar­qui­zação entre o estu­pro cruen­to e o per­pe­tra­do por par­cei­ro ínti­mo, este anun­cia­do como mais gra­ve, foi tra­zi­da pelas usuá­rias para expli­ci­tar a gra­vi­da­de espe­cí­fi­ca de cada for­ma de estu­pro.

Ten­do em vis­ta que o anún­cio da oco­rrên­cia do estu­pro cabe à mulher, essa difi­cul­da­de de reconhe­ci­men­to pode aju­dar a com­preen­der as sub­no­ti­fi­cações ain­da reco­rren­tes: como vis­to, as mulhe­res não asso­ciam cer­tos com­por­ta­men­tos do par­cei­ro a epi­só­dios de vio­lên­cia e, com isso, a prá­ti­ca do estu­pro nas relações de inti­mi­da­de per­ma­ne­ce à mar­gem das esta­tís­ti­cas, como apon­tam estu­dos recen­tes. A dupla invi­si­bi­li­da­de – por ser sexual e por ser na esfe­ra pri­va­da – obs­trui o enfren­ta­men­to des­ta vio­lên­cia. As usuá­rias entre­vis­ta­das, que não sofre­ram estu­pro por par­cei­ros ínti­mos, con­de­nam vee­men­te­men­te esta moda­li­da­de de vio­lên­cia, considerando‑a ain­da mais abo­mi­ná­vel que o estu­pro cruen­to por rom­per um acor­do de con­fia­nça e cum­pli­ci­da­de. Para as mulhe­res que o viven­cia­ram, o reconhe­ci­men­to do estu­pro na relação de inti­mi­da­de, quan­do pos­sí­vel, oco­rreu como pro­ces­so.

Nos casos pes­qui­sa­dos, o pro­ces­so de reconhe­ci­men­to do estu­pro nas relações de inti­mi­da­de pode ser com­preen­di­do a par­tir da elu­ci­dação das usuá­rias enquan­to sujei­tos de direi­to. Ao encon­tra­rem for­mas de asse­gu­rar sua cida­da­nia, sua segu­ra­nça e a pos­si­bi­li­da­de de recons­truir as pró­prias vidas, elas pude­ram nomear e enfren­tar a vio­lên­cia. É pos­sí­vel afir­mar que o pro­ces­so de reconhe­ci­men­to – em qual âmbi­to for – deri­va da resis­tên­cia à obje­ti­fi­cação e aos modos de opres­são ope­ran­tes. Ao pro­du­zir for­mas de sub­je­ti­vação, a mulher redi­men­sio­na sua inse­rção na relação e assenho­ra-se do seu lugar de sujei­to.

É sur­preen­den­te que o estu­pro em relações de inti­mi­da­de ain­da seja tão difi­cil­men­te reconhe­ci­do. No caso apre­sen­ta­do, a mulher só se mos­trou capaz de nomear como estu­pro as inves­ti­das do com­panhei­ro após sofrer um estu­pro cruen­to, este mais facil­men­te nomea­do como tal. Essa cons­ta­tação sina­li­za a impor­tân­cia de pene­trar as relações de inti­mi­da­de, enfa­ti­zan­do as vio­lên­cias que a inti­mi­da­de ain­da ocul­ta.

Referências

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Notas

1. Psi­có­lo­ga e mes­tran­da em Psi­co­lo­gia no Pro­gra­ma de Pós-gra­duação em Psi­co­lo­gia da Uni­ver­si­da­de Fede­ral do Rio de Janei­ro. Con­ta­to: fernanda.mm04@gmail.com

2. Pro­fes­so­ra do Ins­ti­tu­to de Psi­co­lo­gia da Uni­ver­si­da­de Fede­ral do Rio de Janei­ro, pro­fes­so­ra do Pro­gra­ma de Pós-Gra­duação em Psi­co­lo­gia da UFRJ e pro­fes­so­ra do Pro­gra­ma de Pós-Gra­duação em Polí­ti­cas Públi­cas em Direi­tos Huma­nos do NEPP-DH/UFRJ. Con­ta­to: hebe@globo.com

3. O Cen­tro de Refe­rên­cia de Mulhe­res da Maré – Car­minha Rosa (CRMM-CR) é um equi­pa­men­to da polí­ti­ca para as mulhe­res e tam­bém um pro­je­to de exten­são da Uni­ver­si­da­de Fede­ral do Rio de Janei­ro. A ins­ti­tuição ofe­re­ce aten­di­men­to psi­cos­so­cial e jurí­di­co, dis­po­ni­bi­li­za ofi­ci­nas socio­cul­tu­rais e pro­mo­ve deba­tes sobre direi­tos huma­nos, gêne­ro, saú­de da mulher, den­tre outros.

4. No sen­ti­do ado­ta­do aqui, a expres­são estu­pro cruen­to refe­re-se ao que Sega­to (1999, p.387) des­cre­veu como o ato “rea­li­za­do no ano­ni­ma­to das ruas, entre pes­soas des­conhe­ci­das, anô­ni­mas (…), [assen­ta­do] na força ou na ameaça do uso da força”.

5. Este e todos os demais nomes pró­prios são fic­tí­cios.