Retirar crianças e adolescentes da família: problematizando o acaso e o imprevisível na prática profissional
Retirar a niños y adolescentes de la familia: problematizando el acaso y lo imprevisto en la práctica profesional
Ana Lúcia Cintra1, Mériti de Souza2
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
Resumo
O processo de decisão para retirada de crianças e adolescentes de famílias ou serviços de acolhimento é complexo. Utilizando-se a psicanálise de Freud e sua concepção de um eu cindido, instável e atravessado por processos de identificação, bem como a filosofia de Derrida, foi realizada pesquisa sobre o tema. O estudo incluiu observações de campo e entrevistas com profissionais do Sistema de Garantia de Direitos (SGD) da Grande Florianópolis-SC, fazendo uso de atenção flutuante e transferência como instrumentos de investigação e análise. No presente artigo recortamos a perspectiva do acaso e do imprevisível como condições que integram tais processos de decisão, problematizando lógicas lineares de causalidade e suas relações com o sofrimento daqueles implicados nos processos de decisão. Entendemos que essa perspectiva possibilita ir além da lógica formal e da racionalidade moderna do cálculo, ressignificando adversidades, operando com uma escuta sensível ao outro como acontecimento singular.
Palavras-chave: acaso; imprevisível; crianças e adolescentes; psicanálise; prática profissional.
Resumen
El proceso de decisión para retirar niños y adolescentes de sus familias o de servicios de acogimiento es complejo. Utilizando el psicoanálisis de Freud y su concepción de un Yo dividido, inestable y atravesado por procesos de identificación y, también, con la filosofía de Derrida fue posible realizar la investigación sobre el tema. El estudio incluye observaciones de campo y entrevistas con los profesionales del Sistema de Garantía de los Derechos (SGD) de la Gran Florianópolis-SC, haciendo uso de la atención fluctuante y de la transferencia como instrumentos de investigación y análisis. En el presente artículo recortamos la perspectiva del acaso y de lo imprevisto como condiciones que integran tales procesos de decisión, problematizando lógicas lineales de causalidad y sus relaciones con el sufrimiento de aquellas personas involucradas en los procesos de decisión. Entendemos que esa perspectiva posibilita ir más allá de la lógica formal y de la racionalidad moderna del cálculo, dando un nuevo significado a las adversidades y escuchando al otro con sensibilidad como un acontecimiento singular.
Palabras clave: acaso, imprevisto, niños y adolescentes, psicoanálisis, práctica profesional.
Introdução
O fato de crianças não serem criadas por sua família de origem não é exclusividade dos tempos atuais. Por razões que acompanham especificidades de cada cultura e momento histórico – o que inclui as variadas concepções sobre família, escola e infância-adolescência – os filhos gerados podiam ficar aos cuidados de terceiros na própria comunidade ou em instituições cuja finalidade podia estar relacionada tanto à oferta de uma educação formal considerada de qualidade como ao acolhimento em situações de abandono. O Brasil não foge a esse cenário.
A institucionalização de crianças sempre esteve presente na história brasileira, mas a partir do século XX é utilizada preponderantemente junto à população desfavorecida da sociedade e consolidada, até nossos dias, como dispositivo recorrente nos programas sociais de atenção à infância-adolescência (Rizzini & Pilotti, 2011; Rizzin & Rizzini, 2004). A Lei Federal n.º 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA (Brasil, 1990) – configura um marco histórico nessa área ao preconizar a condição de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos. Após sua existência, o antigo orfanato foi substituído pelos denominados Serviços de Acolhimento (Silva & Cabral, 2009). Tal iniciativa visa a um distanciamento entre o passado pejorativo ao qual estão associadas tais instituições e o presente, quando entram em processo de mudanças se afirmando como modalidades de cuidado mais singularizadas, com número reduzido de crianças-adolescentes por instituição, atenção aos vínculos afetivos, além do caráter excepcional e provisório que deve caracterizar a medida de abrigamento.
Os aspectos envolvidos nos movimentos para abrigar e desabrigar crianças e adolescentes são de grande complexidade e ficam sob a responsabilidade de vários operadores do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente. Ainda, também o cidadão comum, escolas, projetos sociais – dentre outros – podem estar presentes de maneira indireta nesse processo, quando realizam denúncias sobre violação de direito nas entidades de defesa.
Diante do exposto, questiona-se a relação que se estabelece entre as necessárias conquistas jurídicas obtidas a partir do ECA e seus desdobramentos nas práticas cotidianas de serviços que integram o Sistema de Garantia de Direitos no Brasil. Levanta-se a hipótese de que nos processos de decisão para retirar crianças-adolescentes de suas famílias ou de serviços de acolhimento, às leis norteadoras se somam afecções que envolvem tanto esses sujeitos como os operadores do SGD neles presentes de maneira mais direta. Em outras palavras, entende-se que ao universal da lei norteadora se soma o singular do sujeito que decide; ao sujeito cognoscente se soma o pathos que o atravessa; ao impessoal da razão se soma a afecção presente na relação com o outro; ao efeito do cálculo soma-se o imprevisível do acaso. Entendemos afecção como o remetido à afetação, a condição do sujeito de afetar e de ser afetado pelo outro e pelo entorno.
Em Força de lei, Derrida (2010) discorre sobre as possibilidades da justiça no âmbito do Direito e neste percurso traz à tona a perspectiva das decisões e, em especial de uma decisão justa:
O instante da decisão é uma loucura, diz Kierkegaard. Isso é particularmente verdadeiro com respeito ao instante da decisão justa, que deve também rasgar o tempo e desafiar as dialéticas. É uma loucura. Uma loucura, pois tal decisão é, ao mesmo tempo, superativa e sofrida, conservando algo de passivo ou de inconsciente, como se aquele que decide só tivesse a liberdade de se deixar afetar por sua própria decisão e como se ela lhe viesse do outro. (Derrida, 2010, p. 52).
A afirmação do autor aponta a complexidade em que se insere toda e qualquer experiência de decisão e, de maneira especial, situações de decisão no âmbito da justiça, universo em que se encontram ancoradas as decisões para retirar crianças e adolescentes da família, bem como encaminhá-los a instituições e definir sua permanência ou desligamento em condições diversas. Ainda, traz à cena o outro que se impõe neste processo, levando à importância de se problematizar concepções como experiência, autoridade, afecção, temporalidade, razão, atividade, passividade, verdade, dentre outras, no intuito de ir além do caminho fácil em que repousa um cumprimento da lei desprovido de questionamento. Destacamos que ao recorrer à afirmação de que o instante da decisão consiste em “loucura”, Derrida problematiza a perspectiva de idealização da razão e da crença na plena autonomia daquele que decide exclusivamente nela ancorado.
Entendemos que as situações de decisão configuram experiências únicas para aqueles nela implicados e que, uma vez tomadas como experiências, estão – necessariamente – calcadas em afecções, as quais, por sua vez, se inserem no universo da contingência. Destacamos a articulação entre experiência e afecção, tal como proposto por Derrida ao afirmar que “A auto-afecção é a condição de uma experiência geral. Esta possibilidade – outro nome para ‘vida’ – é uma estrutura geral articulada pela história da vida e ocasionando operações complexas e hierarquizadas” (Derrida, 2011, p. 202).
O presente artigo configura um recorte de pesquisa desenvolvida junto ao Sistema de Garantia de Direitos da Grande Florianópolis – SC – Brasil4. Foram realizadas observações de campo nos setores desse sistema: Conselho Tutelar, Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI), Serviço de Acolhimento Institucional, Promotoria da Infância e Juventude. Ainda, foram realizadas entrevistas com profissionais que atuam no Sistema: Conselheiro(a) Tutelar, Psicólogo(a), Assistente Social, Promotor(a), Juiz(a). Por considerar a complexidade da realidade e da constituição subjetiva, os dados provenientes do campo foram sistematizados e analisados conforme os pressupostos da livre associação, transferência, acaso, singular, referenciados na psicanálise de Freud, e nos conceitos de lei, justiça, afecção, segundo a proposta da filosofia de Derrida
Na pesquisa realizada, cada entrevistado relatou ao menos um caso para retirada de criança ou adolescente de sua família ou serviço de acolhimento. Ressaltamos que uma das situações com repercussão na mídia local foi lembrada por participantes do trabalho de campo, não raro com forte carga afetiva. No viés da atenção flutuante captou-se a insistência de tal situação se fazer presente no todo da pesquisa, o que nos levou a considerá-la na condição de “caso exemplar” para ilustrar o presente artigo e para problematizar o aspecto do acaso e do imprevisível. Em outras palavras, o presente artigo configura um recorte da pesquisa mais ampla e constitui um caso no qual analisamos a relação daqueles que atuam no SGD da Grande Florianópolis – SC – Brasil, com o processo de decisão atravessado pelo acaso e pelo imprevisível. O material de análise provém de entrevistas com esses profissionais; de observações de campo em instituições que compõem a SGD; e de material divulgado na mídia.
Para situar o leitor sobre a referida situação que configura o caso apresentado e analisado no presente artigo, tomamos como ponto de partida a transcrição de matéria publicada em jornal local e na discussão que segue acrescentamos fragmentos do campo de pesquisa que contribuem para pensarmos sobre este caso marcado pela presença insistente em várias falas.
Caso, Descaso e Acaso
Em setembro de 2011, sob o título de que uma criança havia sido morta em um abrigo da Grande Florianópolis, o jornal Diário Catarinense publica a matéria:
Uma criança morreu queimada após um acidente em um abrigo no bairro Bela Vista I, em São José, na Grande Florianópolis. As informações são dos Bombeiros do município. O acidente ocorreu por volta das 21h. A criança estava sozinha em um dos quartos. No abrigo, estavam outras seis crianças e dois adultos – monitores do abrigo. De acordo com os Bombeiros, os monitores tentaram tirar a criança por uma grade, mas não conseguiram porque o calor era muito forte. Outras crianças chegaram a se intoxicarem com a fumaça e foram encaminhadas para o hospital. Os Bombeiros esperam a conclusão dos trabalhos do Instituto Geral de Perícias (IGP) para identificarem o que ocasionou o incêndio.5
Considerando informações da mídia e o material proveniente do campo de pesquisa, foi possível delinear a complexa situação que envolveu a avó responsável por três crianças, a falta de atendimento que oferecesse possibilidades para evitar o acolhimento institucional, e um acolhimento determinado judicialmente cujo desfecho foi impactante para os entrevistados e comunidade em geral:
“Há dois, três anos atrás um abrigo […] pegou fogo e uma criança morreu”. (Entrevistad@, sobre o episódio de 2011)6;
“[…] não tinha o apoio ali de um programa que realmente pudesse dar o apoio necessário pra aquela vó” (Entrevistad@, sobre o episódio de 2011);
“Tem aquele [outro caso] que o pai ateou fogo no próprio corpo numa casa de madeira, depois veio a polícia e houve troca de tiros”. (Extraída de observação de campo, alusão a situações similares a de 2011);
“E tem o caso que já fugiu 13 vezes [do acolhimento]” (Extraída de observação de campo, sobre criança que permaneceu abrigada após episódio de 2011);
“O acolhimento [foi feito] diante de uma autorização judicial” (Entrevistad@, sobre o episódio de 2011);
“Então a gente procura orientar e encaminhar, se caso de tratamento[alcoolista] e […] alternativas com outros familiares, […] tá trabalhando então a mãe, o pai né, quando tem. Mas é um trabalho, é, árduo, é um trabalho difícil, surgem dúvidas, muitas dúvidas…Até que ponto que a gente tem que trabalhar essa família…” (Entrevistad@, alusão a situações similares a de 2011).
Também afirma o jornal Diário Catarinense que: “Denúncias de maus tratos fizeram a Justiça entender que o melhor para os irmãos era serem encaminhados para um abrigo”7. Poucos dias após o acolhimento, houve um incêndio na instituição para onde haviam sido levadas as crianças, sendo que uma delas veio a falecer. A mesma nota de jornal afirma que essa criança estaria fechada em seu quarto em função do descontentamento por não poder passar o dia de seu aniversário junto com a avó; o caminhão de bombeiros chegou, mas estava sem água. Como complemento,
“Então, essa era uma criança que tava [sofrendo violências], então foi dado esse laudo pra que eles fossem acolhidos, e aí ele morreu queimado, um deles morreu queimado no abrigo e o outro [sofreu violências] no abrigo. Então a gente se pergunta né: o que seria melhor? […] (silêncio). Então, é muito difícil” (Entrevistad@, sobre o episódio de 2011).
A dimensão trágica dessa situação inclui a perspectiva do imprevisível, do acaso, que compõe a vida, mas tende a ser deixado de lado como inexistente. O imprevisível, neste caso, pode dialogar com o descaso – através de possíveis falhas na rede de atenção anterior à decisão judicial, nas condições de cuidado na instituição, bem como na contenção precária do incêndio. Mas também com o acaso, na condição daquilo que, como imponderável, nos escapa. Ainda, supomos que na ótica dos operadores do Sistema de Garantia de Direitos a situação de saúde, vida e moradia da avó responsável pelas crianças definiam adultos e crianças como pessoas em condição de risco e vulnerabilidade, tomando como referência a própria Política Nacional de Assistência Social quando afirma estarem incluídos nessa condição:
famílias e indivíduos com perda ou fragilidade de vínculos de afetividade, pertencimento e sociabilidade; ciclos de vida; identidades estigmatizadas em termos étnico, cultural e sexual; desvantagem pessoal resultante de deficiências; exclusão pela pobreza e/ou no acesso às demais políticas públicas; uso de substâncias psicoativas; diferentes formas de violência advinda do núcleo familiar, grupos e indivíduos; inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho formal e informal; estratégias e alternativas diferenciadas de sobrevivência que podem representar risco pessoal e social. (Brasil, 2005, p. 33).
Por sua vez, a unidade de acolhimento institucional, quando necessária, tem como principal finalidade oferecer proteção às pessoas que se encontrem nessas condições, visto que operam a ruptura de um ciclo através do afastamento daquele que está em risco. Dessas afirmações que comumente fundamentam a necessidade de retirada de uma criança ou adolescente de sua família, emerge o paradoxo de que o “risco”, previsto com base nas denominadas condições precárias de vida da avó e das crianças, se desloca para onde ele não era sequer previstocom base na denominada função protetiva do serviço de acolhimento. A situação relatada problematiza as concepções de risco e proteção em suas relações com a lógica linear estabelecida na causalidade que associa risco à continuidade e ao cálculo do efeito, com a contrapartida da concepção do imprevisível, que acolhe a causalidade a partir de outras bases, tal como o descontínuo e o imprevisível.
Quais aspectos são considerados para estabelecer que certa forma de estar e viver no mundo é nociva o suficiente para desconsiderar formas várias de vinculação afetiva? O que significa estar protegido? Como podemos prever o que acontecerá em determinada situação? Ao lançar mão apenas da lógica linear para tentar responder tais perguntas, estabelecemos relações de causa e efeito que abarcam um olhar onipotente sobre a realidade. A fala que segue parece problematizar o tema: “Será que se […] tivesse deixado lá [com a família] … Por mais difícil, por mais problemático que fosse, mas talvez estivesse vivo…” (Entrevistad@, sobre o episódio de 2011).
Conforme a lógica linear que cauciona a relação entre causa e efeito e a previsão associada ao cálculo quando os efeitos esperados são atingidos, ocorre um tipo de validação das previsões, do contínuo. Ao contrário, quando causa e efeito não se encontram no tempo futuro, emerge a leitura de um “erro de cálculo”, descontinuidade a ser expurgada, corrigida. Se no primeiro caso aquele que decidiu experimenta satisfação, no segundo é tomado pela dor, pelo sofrimento de não ter evitado o erro. Nas entrevistas e observações de campo em que a situação acima relatada veio à tona, foram feitas referências ao sofrimento dos operadores do Sistema de Garantia de Direitos nela envolvidos de forma mais direta.
Entendemos que a crença na possibilidade de controle sobre o real consiste em defesa contra o desamparo humano, desamparo cujo fundamento está na dor da limitação, da finitude. Assim, ao acreditar que o controle é possível, acreditamos – imaginariamente – que a dor é eliminada. Desta forma, o estar, conhecer e agir no mundo parecem ser passíveis de controle pleno, o que leva à valoração hegemônica da continuidade em detrimento da descontinuidade, do cálculo em oposição ao acaso. Entretanto, o descontínuo não só existe como é prenhe de possibilidades imprevisíveis.
Assim, trazemos a reflexão de Naves e Souza (2012) em que a produção científica é deslocada de seu suposto lugar de tudo saber (e controlar) para ser misturada às mazelas de uma bala perdida e do jogo da mega-sena, apontando assim caminhos que ampliam as possibilidades de conhecer, uma vez que consideram o descontínuo e o acaso como a realidade que nos escapa, mas que nem por isso deixa de existir.
A palavra acaso deriva do latim e diz respeito a um contexto, fato, evento, que acontece de forma acidental, ou seja, ocorre de forma aleatória e sem uma explicação aparente. Entendemos que relevar o acaso implica em reconhecer o aleatório, o imprevisível, presentes em fenômenos e situações nas quais não se pode localizar ou determinar a relação linear e contínua entre causa e efeito, segundo os parâmetros da lógica formal e da racionalidade moderna (Naves & Souza, 2012, p. 6).
O imponderável é condição constituinte da existência humana e atravessa todas as suas relações pela simbolização na linguagem quando consideramos o espaçamento como indissociável da alteridade, apontando ao impossível sobre a previsibilidade do que acontece entre determinado ponto denominado inicial, ou causa, e a suposta chegada a um outro, denominado final ou efeito. No desconhecimento de ambos, o que temos é o espaçamento como força, que “não designa nada, absolutamente nada, nenhuma presença à distância” (Derrida, 2001, p. 89). O espaçamento é “justamente, a impossibilidade de reduzir a cadeia a um de seus elos ou de aí privilegiar absolutamente um – ou outro” (Derrida, 2001, p.106).
Ao dar destaque ao acaso e ao descontínuo não pretendemos desconsiderar os esforços que o humano empreende, mas sim apontar que na condição humana estão entrelaçados tanto tais esforços – que incluem o pathos como disposição – quanto o imprevisível que deles escapa. Ao lado de Derrida (2001) e Naves e Souza (2012), entendemos que ao incluir o acaso, o imprevisível, em nossa constituição subjetiva ampliamos tanto nossas possibilidades de suportar a adversidade quanto de olhar o mundo pelo fio de luz de frestas até então desconsideradas:
Transformando a conjuntura humana do imprevisível e do aleatório em condição humana que se situa para além da lógica formal, isto é, fornecendo um limite, mesmo ficcional, a um corpo estranho, nós nos tornamos menos incapazes para suportá-lo na condição do que escapa a previsão e ao controle. Nesta condição, por um lado não importam as “habilidades do jogador”, pois, o ganho e a perda são determinados por um conjunto de causas muito pequenas ou muito complexas para que algum resultado possa ser previsto. Por outro lado, ao sobrevalorizar essas habilidades entram em cena as supostas qualificações de cada humano, […] que viabilizam a competência ou a incompetência, bem como, a culpa ou a responsabilidade, perante as diversas situações cotidianas (Naves & Souza, 2012, p. 8).
O acaso, constituinte do caldo cotidiano em que vivemos imersos, tende a ser desconsiderado frente à ânsia de tudo planejar e prever, como se possível fosse estabelecer ligações de causa e efeito de forma a obter os resultados desejáveis. Tal perspectiva se conecta à lógica formal estabelecendo uma relação direta entre os acontecimentos e as intenções e vontades do sujeito; opera-se uma equação linear entre causa-consciência-vontade-ação-efeito que, em nosso olhar, concebe um homem onipotente, não castrado. A conhecida expressão freudiana de que o atravessamento do inconsciente impossibilita ao humano ser senhor em sua própria casa (Freud, 1916/1981) constitui em aspecto de peso para problematizar a condição de onipotência acima mencionada. Entretanto, para além dela, também em Freud (1910/1981) encontramos o acaso como algo que nos escapa (e nos destina) desde sempre:
Considerar que o acaso não pode determinar nosso destino nada mais é do que uma recaída ao ponto de vista religioso sobre o Universo, que o próprio Leonardo estava a ponto de superar quando escreveu que o sol não se move. Naturalmente, ficamos decepcionados por ver que durante nossa infância mais remota, período tão vulnerável de nossas vidas, um Deus justo e uma providência bondosa não nos protegem melhor contra tais influências. Mas ao pensar assim esquecemos que realmente em tudo, de fato, o que influi em nossa vida é sempre o acaso, desde nossa gênese a partir do encontro de um espermatozóide com um óvulo − acaso que, no entanto, participa das leis e necessidades da natureza, faltando-lhe apenas qualquer ligação com nossos desejos e ilusões (Freud, 1910/1981, p. 1619).
A perspectiva do Sistema de Garantia de Direitos é de proteção, com o que não discordamos. Entretanto, entendemos ser importante incluir em tal perspectiva os limites dessa proteção, não somente porque podem existir falhas no funcionamento e articulação dos serviços que integram esse Sistema, mas também porque o acaso integra a realidade. É importante reforçar que não propomos sejam abolidos os esforços de proteção, mas sim que nestes esforços seja incluída a dimensão do acaso como possibilidade que define nossos destinos, como dimensão inerente aos nossos processos de conhecimento. Desta forma escapamos da perspectiva que toma como ponto de partida a intenção e a vontade de determinado sujeito para prever os efeitos delas decorrentes e, assim, estabelece uma relação de natureza linear-imediata entre causa e efeito, característica da lógica formal.
Considerando o universo de nossa pesquisa e as palavras de Freud acima citadas, se acreditamos que no trabalho de atenção à criança e ao adolescente – através de encaminhamentos, diagnósticos, laudos, decisões – podemos desconsiderar o acaso, estamos operando com uma concepção de ciência de caráter divino, que pode tudo calcular, prever, prevenir, proteger. E quando a realidade não se mostrar como previsto, o resultado será lido como erro técnico (dos profissionais) ou falta de vontade (da família ou da criança-adolescente).
Na obra de Freud (1910, 1916–17, 1937/1981) observamos que a singularidade e o acaso compõem o conjunto de aspectos que definem a etiologia da neurose de forma a não delimitar um fator causal que leve a um efeito específico. Não é preponderante a ideia de se definir uma origem para a ocorrência de determinada neurose, mas sim de expandir o olhar aos possíveis que se entrelaçam nessa ocorrência, possibilitando encontrar verdades que não se excluem uma em relação a outra para que se chegue a “uma verdade”. Nesta direção, a proposição para produzir conhecimento diverge daquela norteada pela ciência positiva dos tempos de Freud, presente ainda na contemporaneidade (Freud, 1916/1981).
Diante do exposto, podemos afirmar que na forma conjunta – o acaso como elemento da realidade exterior e como potência da vida psíquica (pulsional) – é reforçado o olhar à impossibilidade da totalidade da previsão e do controle propostos na lógica formal, pois sempre há algo que nos escapa, a partir do que se dão acontecimentos cujas ressonâncias fogem a toda e qualquer previsibilidade. Tal leitura sobre o acaso visa “colocar em diálogo” aspectos da produção de conhecimento (e da prática clínica) por vezes dissociados ou, ainda, como passíveis de serem descartados: “[…] o conjunto do real da experiência e o conjunto do funcionamento do aparelho psíquico” (Macedo, 1997, p. 8).
Ao contrário do que se possa supor, considerar a dimensão do acaso não significa descaso ou abandono de busca de relações entre contextos e pessoas, mas sim possibilitar abertura ao imponderável, condição que caracteriza a diferença, a alteridade, bem como possibilitar a crítica à concepção que advoga a previsibilidade completa via a atribuição da intencionalidade humana e da causalidade linear. É oportuno retomar aspectos do que foi exposto anteriormente através das ideias de Naves e Souza (2012) ao tomaram as situações da bala perdida e da mega-sena como recortes do cotidiano que problematizam as estratégias da condição humana para contornar a imprevisibilidade e o descontínuo. Para os autores, “o humano no seu desamparo e dor perante a incomensurabilidade e o inexprimível na natureza, no outro e no próprio psiquismo, adota o procedimento de estabelecer sentidos a atribuir nexos causais às experiências e acontecimentos que o rodeiam e o constituem”. (p.371)
Em outras palavras, quando acreditamos que tudo podemos prever e que os “desvios” dessa previsão constituem erro (a bala perdida), há sempre a suposição de um culpado: eu, o outro ou o poder superior representado por deus ou pela ciência divinizada. Quando o pouco provável das previsões se concretiza de forma “positiva” (ganhar na mega-sena), o feito é atribuído a uma condição de merecimento advinda de um eu narcisicamente inflado ou a conjunturas cósmicas a ele superiores (mas que olham por ele). Pelo desvio ou pela realização, o acaso não é significado como tal, mas é – paradoxalmente – encapsulado em lógicas de causa e efeito. Logo, fica ainda por fazer a tomada do acaso como acaso.
Macedo (1997) destaca que o lugar do acaso e da imprevisibilidade possibilita reconhecer um espaço intermediário e problematizar posições em que tensão e paranoia podem se instalar de maneira totalizante. Entendemos que essa observação é importante para aqueles que atuam nas situações de decisão para retirada de crianças e adolescentes da família ou serviços de acolhimento, pois na condição de tomada de decisões complexas, podem se configurar tensões extremadas quando se considerar que a proteção deve ser total. Talvez caiba aos profissionais tanto o movimento de busca por soluções denominadas protetivas na ótica do direito e daquele que decide quanto a posição de acolher o acaso como reconhecimento de limite do controle por parte do humano e como esforço de se aproximar do outro, ou seja, naquilo em que a singularidade deste outro possa trazer como acontecimento. O que, de fato, não podemos ter a mínima ideia, seja qual for o espaço de atuação do profissional implicado:
Às vezes o acaso se prolonga no espaço da própria análise: o calor do verão trará uma mulher bonita, com seios triunfantes e pernas maravilhosas, até então escondidos debaixo de vestidos de cores tristes. Uma outra encontrará um perfume tão harmonioso que se poderá notar como é agradável à sua pele; este homem severo virá à sua sessão de bermudas, permitindo à criança de calças curtas, finalmente, assumir um lugar na partida que ele joga e que se chama sua vida. (Macedo, 1997, p. 10).
Não há como negar serem esses caminhos em que a condição de risco integra a cena da existência – como sempre o é –, sem o deixar escamoteado. Na expressão de Pelbart (2000), há momentos em que a decisão sobre o rumo das coisas (no teatro e na vida) fica um por um triz:
É por um triz que tudo acontece, mas esse por um triz não é ocultado – ele subjaz a cada gesto e o faz vibrar. Não é só que a segurança do mundo se vê abalada, mas esse abalo introduz no mundo (ou apenas lhe desvela) seu coeficiente de indeterminação, de jogo e de acaso (Pelbart, 2000, p. 102).
Considerações finais
Em mais de uma situação que integrou o campo de pesquisa os operadores mencionam suposição e aproximação do que denominaram como sofrimento das pessoas em relação às quais precisavam encaminhar decisões. Nesse movimento de proximidade, os operadores também indicam um sofrimento próprio. No conjunto de nossas leituras sobre tais relatos, delineamos que a expressão “sofrimento” é nessas falas utilizada na acepção do senso comum, e apontamos que a perspectiva das afecções possibilita a leitura de que nesse contato com o outro o que emerge é a angústia. Neste recorte, ganha expressão o lugar que um e outro ocupam nas correspondentes cenas psíquicas atravessadas pela transferência que caracteriza as relações humanas. Ou seja, ao recorrer à lei, a interpretação desse texto não se dá apenas pela razão, mas também pela afecção. Na proximidade com o sofrimento do outro, que pela afetação evidencia a angústia, podemos apontar à dimensão ética em que a transformação da angústia emerge como imperativo para encaminhar decisões por caminhos diversos, não sabidos a priori.
Por um lado, a angústia engendrada no processo de decisão pode enveredar pela perspectiva do sofrimento tal como postulado pela tradição hegemônica que mantém as polaridades hierárquicas do ativo e do passivo, que no caso específico situaria o operador do Sistema de Garantia de Direitos como ativo (pois deve cuidar, proteger, agir), enquanto a criança-adolescente-família seria alocada na condição de passiva (incapaz, desprotegida, sobre quem recai a ação). Nessa perspectiva, o outro – em sua condição mesma de alteridade – é desconsiderado por aquele que decide, visto que lhe é endereçada a condição de refém do supostamente ativo. Seria essa uma ótica hegemônica que, ancorada na perspectiva dos direitos, norteia políticas públicas e instituições que integram o SGD? Por outro, pela angústia pode se fazer possível o reconhecimento da complexidade do humano, sua condição conflituosa, indeterminada, trágica, deslizando assim a uma ética em que é sabido não existirem caminhos rápidos e fáceis. Tal suportabilidade da angústia (e da incerteza do acaso) não exclui o imperativo da decisão, mas pode abrir espaço ao movimento que busca alternativas nem sempre convencionais.
Ao se deslocar para além das lógicas formais e lineares que buscam operar com a previsibilidade e o controle, podemos dizer que no “caso”, acima mencionado, não era possível aos profissionais preverem que haveria um incêndio. Da mesma maneira, não é possível assegurar que determinadas formas de viver sejam equacionadas a riscos que, por sua vez, levem ao imperativo da proteção (suposta). Qual vida? Qual risco? Qual proteção? Não sabemos. Rastros da dimensão finita de nossa condição humana e imprecisa das decisões. Talvez, o esforço de olhar pelas frestas possa levar a outras imprevisíveis possibilidades. Talvez sim, talvez não.
Referências
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Rizzini, I.; Rizzini. I. (2004). A institucionalização de crianças no Brasil: percurso histórico e desafios do presente. 2. ed. São Paulo: Loyola.
Silva, A. P.; Cabral, C. (Orgs.) (2009). Grupo de Trabalho Nacional Pró-Convivência Familiar e Comunitária (Brasil): Fazendo Valer um Direito. Rio de Janeiro: Terra dos Homens.
Notas
1.Psicóloga e Psicanalista; Doutora em Psicologia pela UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina – Brasil; Especialista em Teoria Psicanalítica pela PUC-SP. Rua Lauro Linhares, 2123, sala 706 A – Trindade – Florianópolis – SC – Brasil – 88.036–002. E‑mail: analucia@floripa.com.br
2.Professora na Graduação e no Programa de Pós Graduação em Psicologia na UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina – Brasil; Doutora em Psicologia pela PUC – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Pós Doutorado no CES – Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; Psicóloga. Departamento de Psicologia – CFH – UFSC – Campus Trindade – 88040910 – Florianópolis – Brasil. Email: meritisouza@yahoo.com.br
3.Tais serviços se subdividem em: Casa de Passagem, Casa-Lar, Abrigo Institucional, Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora. No caso específico deste estudo nos ocupamos apenas das modalidades Casa-Lar e Abrigo Institucional, referidos como sinônimos, através das expressões “serviço de acolhimento”, “instituição”, “instituição de acolhimento” e “abrigo”.
4.O artigo toma como base a tese de doutorado Decidir é (im)preciso: sobre a retirada de crianças e adolescentes de suas famílias ou serviços de acolhimento orientada pela Profa. Dra. Mériti de Souza, defendida por Ana Lúcia Cintra em 2015 na UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina – Brasil. A pesquisa obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de Santa Catarina sob o Parecer nº 1056952.
5.Em: http://dc.clicrbs.com.br/sc/noticias/noticia/2011/09/incendio-em-abrigo-mata-crianca-em-sao-jose-na-grande-florianopolis-3482572.html
6.Visando não identificar pessoas entrevistadas e no intuito de escapar das armadilhas do masculino como gênero hegemônico no uso do plural, optamos pelo “@” em substituição ao “a” e ao “o”.
7.Em: <http://diariocatarinense.clicrbs.com.br/sc/noticia/2011/09/crianca-que-morreu-queimada-em-abrigo-de-sao-jose-teria-se-trancado-no-quarto-diz-prefeitura-3485211.html>