Leis, poder e ideologia: crítica ao discurso sobre a transgressão no Brasil Descargar este archivo (1-Abuso-sexual-infantil.pdf)

Mériti de Souza[1]

Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil

Resu­mo

Cir­cu­la na rede social bra­si­lei­ra o dis­cur­so que apon­ta o bra­si­lei­ro como cons­ti­tuí­do por uma sub­je­ti­vi­da­de trans­gres­so­ra com difi­cul­da­de de aca­tar a lei. Esse dis­cur­so des­qua­li­fi­ca a popu­lação nacio­nal e escon­de a reali­da­de sobre as prá­ti­cas jurí­di­cas vigen­tes no país. Para tra­balhar essa ques­tão rea­li­za­mos um estu­do uti­li­zan­do recur­sos da psi­ca­ná­li­se e do mar­xis­mo, ana­li­san­do o poder, a ideo­lo­gia, a sub­je­ti­vi­da­de, na cons­trução do dis­cur­so da trans­gres­são ineren­te ao bra­si­lei­ro. Vigo­ra no país o dis­cur­so moderno sobre a con­ce­pção da lei e da igual­da­de como valo­res uni­ver­sais, porém, na prá­ti­ca essa con­ce­pção vigo­ra ape­nas para a eli­te eco­nô­mi­ca e cul­tu­ral. Assim, a maio­ria da popu­lação ques­tio­na a ins­ti­tuição jurí­di­ca, porém, reconhe­ce a lei. Entre­tan­to, o dis­cur­so sobre a trans­gres­são do bra­si­lei­ro per­ma­ne­ce dis­se­mi­na­do pois ser­ve a manu­te­nção do poder e do sta­tus quo pela eli­te.

Pala­vras-cha­ve: trans­gres­são; Bra­sil; ideo­lo­gia; poder.

Resu­men

Cir­cu­la en las redes socia­les bra­si­le­ñas el dis­cur­so de que el ciu­da­dano bra­si­le­ño está cons­ti­tui­do por una sub­je­ti­vi­dad trans­gre­so­ra y con pro­ble­mas para aca­tar la ley. Ese dis­cur­so des­ca­li­fi­ca a la pobla­ción nacio­nal y escon­de la reali­dad sobre las prác­ti­cas jurí­di­cas vigen­tes en el país. Para tra­ba­jar en ese asun­to hemos rea­li­za­do un estu­dio uti­li­zan­do recur­sos del psi­co­aná­li­sis y del mar­xis­mo, ana­li­zan­do el poder, la ideo­lo­gía y la sub­je­ti­vi­dad en la cons­truc­ción del dis­cur­so de la trans­gre­sión inhe­ren­te al ciu­da­dano bra­si­le­ño. Exis­te en el país el dis­cur­so moderno sobre la con­cep­ción da ley y de la igual­dad como valo­res uni­ver­sa­les. Sin embar­go, en la prác­ti­ca, esa con­cep­ción se apli­ca ape­nas para la eli­te eco­nó­mi­ca y cul­tu­ral. Así, la mayo­ría de la pobla­ción cues­tio­na a la ins­ti­tu­ción jurí­di­ca, pero reco­no­ce a la ley. El dis­cur­so sobre la trans­gre­sión del ciu­da­dano bra­si­le­ño per­ma­ne­ce dise­mi­na­do por­que sir­ve para man­te­ner el poder y el sta­tu quo de la eli­te.

Pala­bras cla­ve: trans­gre­sión, Bra­sil, ideo­lo­gía, poder.

Introdução

No atual cená­rio bra­si­lei­ro encon­tra­mos dis­cur­sos que asso­ciam a trans­gres­são e a fal­ta de éti­ca a bra­si­li­da­de, bem como, asso­ciam esses aspec­tos a pes­soas oriun­das de gru­pos sociais de bai­xa ren­da e a gru­pos cul­tu­ral­men­te des­qua­li­fi­ca­dos. Ou seja, encon­tra­mos dis­se­mi­na­da na rede social e entre pro­fis­sio­nais de dife­ren­tes abor­da­gens a repre­sen­tação de que o bra­si­lei­ro teria difi­cul­da­de sub­je­ti­va na ins­crição psí­qui­ca da lei, bem como, teria difi­cul­da­de no cum­pri­men­to da lei jurí­di­ca, o que redun­da­ria na sua fal­ta de capa­ci­da­de éti­ca. Dis­cor­da­mos da pre­ten­sa ano­mia cons­ti­tu­ti­va do bra­si­lei­ro embo­ra reconheça­mos a dis­cre­pân­cia entre a lei for­mal e a lei pra­ti­ca­da no coti­diano, da mes­ma for­ma que reconhe­ce­mos a impu­ni­da­de que pre­do­mi­na no Bra­sil asso­cia­da a dis­cre­pân­cia na apli­cação da lei jurí­di­ca às dife­ren­tes cama­das da popu­lação (Da Mat­ta, 1983, 1984; Bar­bo­sa, 1992; Calli­ga­ris, 2000; Bir­man, 2001).

Enten­de­mos que o cená­rio aci­ma cola­bo­ra com a dis­se­mi­nação da con­ce­pção de que o povo bra­si­lei­ro apre­sen­ta­ria difi­cul­da­des na cons­trução e exer­cí­cio da prá­ti­ca da lei e da éti­ca. Porém, tam­bém enten­de­mos que essa con­ce­pção se asso­cia a espe­cí­fi­co dis­cur­so que cir­cu­la na rede social bra­si­lei­ra. Assim, a eli­te que exer­ce o poder no país divul­ga o dis­cur­so de que no país vigo­ram ins­ti­tuições e prá­ti­cas moder­nas e éti­cas, sen­do que par­ce­la da popu­lação que com­põe as cama­das pobres não con­se­gue exer­cer essas prá­ti­cas éti­cas. Con­for­me apon­ta­mos dis­cor­da­mos des­se dis­cur­so e enten­de­mos que em qual­quer socie­da­de, encon­tra­mos pes­soas que exer­cem prá­ti­cas éti­cas e lidam com a lei, assu­min­do as leis pre­sen­tes nas ins­ti­tuições, bem como, incor­po­ran­do a lei no plano sub­je­ti­vo, inde­pen­den­te da posição social e eco­nô­mi­ca ocu­pa­da (Sou­za, 2017).

Não obs­tan­te, con­si­de­ra­mos que a con­ce­pção moder­na sobre o sujei­to como exclu­si­va­men­te cog­nos­cen­te e éti­co e capaz de conhe­cer ple­na­men­te a reali­da­de e agir sobre ela de for­ma racio­nal e éti­ca, se reve­la idea­li­za­da à medi­da que esta­be­le­ce uma relação linear e cau­sal entre essa con­ce­pção da cons­ti­tuição sub­je­ti­va e a ação do sujei­to na prá­ti­ca social. Em outras pala­vras, o pon­to de sutu­ra que asso­cia o ideal moderno de con­quis­ta da cida­da­nia ao tra­balho exclu­si­vo da cons­ciên­cia se expli­ci­ta na con­ce­pção ilu­mi­nis­ta que advo­ga a assu­nção do sujei­to racio­nal e éti­co a par­tir do exer­cí­cio da cida­da­nia con­for­me pres­cri­ta pelo con­tra­to social. Assim, segun­do essa pre­mis­sa moder­na a con­quis­ta da cida­da­nia ope­ra­ria um efei­to sub­je­ti­vo ime­dia­to e linear em relação à reor­ga­ni­zação sub­je­ti­va e cog­nos­cen­te, pois, a con­quis­ta des­se lugar social pos­si­bi­li­ta­ria a assu­nção da razão por meio do tra­balho de con­te­nção das pai­xões redun­dan­do neces­sa­ria­men­te no lugar éti­co ocu­pa­do pelo sujei­to na relação com o outro (Bau­man, 2001; Ber­man, 1986; Jame­son, 1996).

Em suma, por um lado, temos a con­ce­pção moder­na sobre o sujei­to cog­nos­cen­te e éti­co que uti­li­za con­ce­pções idea­li­za­das sobre o sujei­to e ado­ta o pres­su­pos­to de que a assu­nção da cida­da­nia via­bi­li­za­ria a muda­nça sub­je­ti­va com o esta­be­le­ci­men­to da capa­ci­da­de e do exer­cí­cio éti­co. Por outro, temos a con­ce­pção de que socie­da­des defi­ni­das como moder­nas seriam con­for­ma­das por sujei­tos éti­cos ou em con­dições de se tor­na­rem éti­cos. No con­tra­pon­to, socie­da­de defi­ni­das como em via de transição para a moder­ni­da­de apre­sen­ta­riam difi­cul­da­de tan­to no plano social e ins­ti­tu­cio­nal, quan­to no plano sub­je­ti­vo, sen­do que seus habi­tan­tes apre­sen­ta­riam difi­cul­da­des no plano éti­co. Con­for­me essas aná­li­ses o Bra­sil, pais em con­dições de transição para a moder­ni­da­de apre­sen­ta­ria difi­cul­da­des na pro­dução social de ins­ti­tuições e prá­ti­cas e na pro­dução sub­je­ti­va de sujei­tos dire­cio­na­dos ao exer­cí­cio do cum­pri­men­to da lei e da éti­ca.

A par­tir des­se con­tex­to, inter­es­sa-nos pro­ble­ma­ti­zar a expe­riên­cia com a lei que atra­ves­sa o cená­rio bra­si­lei­ro. Assim, nos mobi­li­za o inter­es­se por ana­li­sar a relação esta­be­le­ci­da entre prá­ti­ca trans­gres­si­va e per­ver­são da éti­ca na sua inter­fa­ce com o outro que atra­ves­sa a cons­ti­tuição sub­je­ti­va, con­si­de­ran­do os aspec­tos do poder e da ideo­lo­gia. Para tan­to em ter­mos de estra­té­gia meto­do­ló­gi­ca reco­rre­mos à aná­li­se teó­ri­ca a par­tir de auto­res ori­gi­ná­rios de áreas do conhe­ci­men­to que tra­balham com con­ce­pções mar­xis­tas e freu­dia­nas para ana­li­sar as con­ce­pções de ideo­lo­gia e de poder e suas asso­ciações com a dis­se­mi­nação de dis­cur­sos pela eli­te com obje­ti­vo de des­qua­li­fi­car cama­das pobres da popu­lação. Tam­bém reco­rre­mos a auto­res ori­gi­ná­rios da psi­ca­ná­li­se e da psi­co­lo­gia para ana­li­sar a ques­tão da ins­crição da lei em ter­mos sub­je­ti­vos, con­si­de­ran­do essa ques­tão no cená­rio bra­si­lei­ro.

Efeitos institucionais e subjetivos da perversão da ética.

As regras esta­be­le­ci­das no con­tra­to social moderno dizem res­pei­to a lei uni­ver­sal e a adoção de valo­res que supõem a igual­da­de de direi­tos e o con­co­mi­tan­te reconhe­ci­men­to do outro. Entre­tan­to, no Bra­sil, ape­sar das leis e nor­mas jurí­di­cas encon­tra­rem-se defi­ni­das con­for­me essas nor­mas e leis, as prá­ti­cas coti­dia­nas e mes­mo um dis­cur­so que se repe­te à exaus­tão afir­mam que ampla par­ce­la da popu­lação, no caso pes­soas pobres e cul­tu­ral­men­te dis­cri­mi­na­da, não reconhe­cem as leis e apre­sen­tam difi­cul­da­des de ins­crição da lei no plano sub­je­ti­vo. Nes­se cená­rio oco­rre a dis­se­mi­nação da con­ce­pção de que a maio­ria da popu­lação é des­qua­li­fi­ca­da e temos a des­igual­da­de ope­ran­do tan­to no plano social e eco­nô­mi­co quan­to no plano sub­je­ti­vo. O outro que não per­ten­ce a eli­te social e eco­nô­mi­ca do país é trans­for­ma­do em obje­to, pois supos­ta­men­te não con­se­gue corres­pon­der a con­dição de cida­dão.

É conhe­ci­do o con­cei­to de bana­li­zação do mal, cunha­do por Han­nah Arendt na obra Eich­mann em Jeru­sa­lém (1999). Ao acom­panhar o jul­ga­men­to de Eich­mann a auto­ra argu­men­ta que ele não mani­fes­ta res­pon­sa­bi­li­da­de ou cul­pa peran­te a mor­te de milha­res de pes­soas nos cam­pos de con­cen­tração nazis­tas. Ele ape­nas men­cio­na que cum­pria ordens e para­do­xal­men­te, pro­cu­ra se jus­ti­fi­car insi­nuan­do que não tinha uma alter­na­ti­va e que cum­pria bem suas funções buro­crá­ti­cas.

A par­tir do rela­to de Arendt (1999) é pos­sí­vel enten­der que Eich­mann se colo­ca em uma posição sub­je­ti­va na qual não se impli­ca na relação com o outro. Ou seja, a res­pon­sa­bi­li­da­de peran­te o outro, a cul­pa ou, para­do­xal­men­te, o ódio, indi­cam algum tipo de reconhe­ci­men­to do outro. Porém, no dis­cur­so no qual o sujei­to se colo­ca na posição de que era um fun­cio­ná­rio exem­plar e que ape­nas cum­pria ordens, pode­mos pen­sar que a relação com o outro está esca­mo­tea­da e que esse sujei­to se encon­tra na posição de alie­nação face ao outro e face a sua pró­pria sub­je­ti­vi­da­de. No caso, tam­bém pode­mos pen­sar que a rede social e a modu­lação sub­je­ti­vação estão atra­ves­sa­das pelo poder e pela ideo­lo­gia, como pro­ces­sos que difi­cul­tam ao sujei­to sua per­ce­pção da reali­da­de e do outro.

A psi­ca­ná­li­se nos mos­tra que o outro tan­to é impor­tan­te para o sujei­to na vida coti­dia­na quan­to é neces­sá­rio para a cons­ti­tuição sub­je­ti­va do humano. Porém, na rede social con­tem­po­râ­nea o outro tam­bém está a assu­mir a con­dição de peri­go­so, sen­do enten­di­do inclu­si­ve como um peri­go para o sujei­to. Vários auto­res nos mos­tram que essa lei­tu­ra acon­te­ce em deco­rrên­cia da pre­do­mi­nân­cia das moda­li­da­des sub­je­ti­vas atuais que levam as pes­soas a se cons­ti­tuí­rem de for­ma extre­ma­men­te nar­ci­sis­ta e dire­cio­na­das ao gozo ime­dia­to. Des­sa for­ma, o outro pode ser tor­nar um empe­cilho para o nar­ci­sis­mo e para o gozo do sujei­to, já que ele encar­na a dife­re­nça e a alte­ri­da­de em relação ao desejo do sujei­to (Frei­re Cos­ta, 1986; 1994; Lasch, 1983).

Como apon­ta Freud (1914/2004) o nar­ci­sis­mo é neces­sá­rio à cons­ti­tuição sub­je­ti­va, porém, o que vemos é seu incre­men­to e seus efei­tos na relação com o outro. Em outras pala­vras, como afir­ma Frei­re Cos­ta (1986, 1994) a rede social bra­si­lei­ra é atra­ves­sa­da pelo nar­ci­sis­mo o que aju­da na pro­dução de sujei­tos que não se impli­cam, não se res­pon­sa­bi­li­zam. Nes­se con­tex­to o outro não fun­cio­na mais como valor e sim ape­nas para sus­ten­tar o lugar do sujei­to. Temos um terreno pro­pí­cio para a per­ver­são da lei e da éti­ca, pois a cul­pa em relação a con­dição do outro ou o seu reconhe­ci­men­to per­dem efi­cá­cia.

O psi­ca­na­lis­ta Hélio Pelle­grino (1987) afir­ma que “o pobre abso­lu­to não tem por que man­ter o pac­to social com uma socie­da­de que o reduz à con­dição de detri­to, ao mes­mo tem­po que, em seus estra­tos diri­gen­tes, se entre­ga à corru­pção e ao debo­che impu­ne. Ele tem toda razão de odiar e repe­lir essa socie­da­de” (p.204).

Pode­mos enten­der que no Bra­sil as ins­ti­tuições jurí­di­cas, em suas várias moda­li­da­des, man­tem leis explí­ci­tas escri­tas nas legis­lações que afir­mam a igual­da­de, porém, exis­tem leis não expli­ci­tas, não escri­tas, mas que fun­cio­nam na prá­ti­ca, que afir­mam que “nem todos são iguais peran­te as leis”, prin­ci­pal­men­te os pobres e os dis­cri­mi­na­dos cul­tu­ral­men­te. Temos aqui a per­ver­são da lei e da éti­ca. Con­ti­nuan­do e amplian­do o racio­cí­nio, tam­bém é pos­sí­vel infe­rir que o poder exer­ce impor­tan­te papel na ela­bo­ração des­sa per­ver­são social. Esse pro­ble­ma nos leva a reconhe­cer a ques­tão do poder como impor­tan­te na pro­dução da per­ver­são da éti­ca e da lei, bem como, apon­ta à neces­si­da­de da sua inves­ti­gação. Pare­ce-nos que esse pac­to per­ver­so ope­ra na rede social nacio­nal, pois a reali­da­de de que a legis­lação jurí­di­ca é escri­ta para ser­vir ape­nas uma par­ce­la da popu­lação é ope­ra­cio­na­li­za­da pela eli­te que ins­tru­men­ta­li­za a lei. Ato con­tí­nuo, a maio­ria da popu­lação des­conhe­ce essa reali­da­de e é cap­tu­ra­da pelas arti­manhas do poder e da ideo­lo­gia.

Para lidar com esses dis­cur­sos que con­se­guem hege­mo­nia no cená­rio nacio­nal e bus­cam des­qua­li­fi­car uma par­ce­la da popu­lação enten­de­mos ser impor­tan­te apon­tar a exis­tên­cia na socie­da­de clas­sis­ta na qual vive­mos das hie­rar­quias e suas estra­té­gias orga­ni­za­das nos pla­nos ins­ti­tu­cio­nais e nos modos de sub­je­ti­var que sus­ten­tam o poder. Impor­tan­te aqui reto­mar as con­ce­pções clás­si­cas que ana­li­sam as estra­té­gias pre­sen­tes nos cená­rios sociais e sub­je­ti­vos que pro­cu­ram man­ter as hie­rar­quias e a reali­da­de clas­sis­ta. Tam­bém, pare­ce impor­tan­te reto­mar os estu­dos sobre o poder e sobre a ideo­lo­gia, con­si­de­ran­do que no plano cole­ti­vo e das socie­da­des, bem como, no plano sub­je­ti­vo, temos essas estra­té­gias ope­ran­do e pro­du­zin­do a sus­ten­tação dos dis­cur­sos que dis­cri­mi­nam e des­qua­li­fi­cam as clas­ses domi­na­das. Ou seja, con­si­de­ra­mos impor­tan­te reto­mar aqui lei­tu­ras da psi­ca­ná­li­se e do mar­xis­mo sobre o poder e a ideo­lo­gia, con­si­de­ran­do que elas podem auxi­liar na com­preen­são do nos­so tema de estu­do, já que elas inci­dem nos aspec­tos da rede social e da sub­je­ti­vi­da­de. Essas lei­tu­ras, ain­da que dife­ren­tes, e jus­ta­men­te pela sua dife­re­nça, podem ampliar o refe­ren­cial ana­lí­ti­co e nos aju­dar a tra­balhar a ques­tão da relação da popu­lação bra­si­lei­ra com as leis. Assim, reto­ma­mos aqui alguns aspec­tos dos clás­si­cos estu­dos de Marx e de Freud sobre o poder e sobre a ideo­lo­gia.

Rede Social e subjetividade: poder e ideologia

Tra­tan­do-se da ideo­lo­gia e do poder acre­di­ta­mos que essas sejam ques­tões cha­ves na relação do sujei­to com o outro e com a des­igual­da­de, nas moda­li­da­des da rede social e da sub­je­ti­vi­da­de. Enten­de­mos que no caso do poder temos uma lei­tu­ra majo­ri­tá­ria mar­xis­ta segun­do a qual o poder se deba­te entre o par­ti­do, o Esta­do e os movi­men­tos da socie­da­de civil (Marx, 1859/ 1982; 1848–1850/2012). No caso do psi­quis­mo, o poder é enten­di­do na lei­tu­ra psi­ca­na­lí­ti­ca como o emba­te entre as pul­sões e a repres­são inter­na e exter­na, ou seja, entre as ins­tân­cias psí­qui­cas do eu, do supere e do id (Freud, 1919/1977; 1930/ 1977).

Freud já apon­tou que o poder é vivi­do pela cria­nça de for­ma ambí­gua. Ela deseja o poder do adul­to, que se con­fun­de com seu pró­prio poder (o adul­to satis­faz ou não suas neces­si­da­des de carinho, pro­teção, cui­da­dos físi­cos, den­tre outras). Entre­tan­to, a par­tir da sua his­tó­ria de vida, sen­ti­men­tos con­fli­tan­tes como o amor e o ódio gera­dos pela mes­ma pes­soa, irão imbri­car-se, levan­do a cria­nça a deseja e a repu­diar o poder. Exem­pli­fi­can­do, o poder pode ser repre­sen­ta­do pela cria­nça como o desejo de repu­diar a mãe que demo­ra a dar-lhe o lei­te, porém, essa mes­ma mãe já a ali­men­tou a pro­te­geu ante­rior­men­te, daí essa cria­nça afas­ta esse sen­ti­men­to de ódio reprimindo‑o, tornando‑o incons­cien­te, e jun­to com essa situação cria-se uma outra: a ambi­gui­da­de de sen­ti­men­tos para com o poder, no caso, o desejo e o repú­dio.

Sabe­mos tam­bém o quan­to o poder se liga à figu­ra pater­na (o pró­prio pai ou uma figu­ra que o subs­ti­tuiu) de várias for­mas. Numa pri­mei­ra ins­tân­cia via o conhe­ci­do com­ple­xo de Édi­po, onde a cria­nça deseja a exclu­si­vi­da­de do amor e o carinho do pro­ge­ni­tor do sexo opos­to, pas­san­do a se iden­ti­fi­car com a figu­ra do mes­mo sexo que detém esse carinho. Porém, essa figu­ra com a qual ela se iden­ti­fi­cou tam­bém lhe des­per­ta sen­ti­men­tos ambi­va­len­tes, repe­tin­do-se o fenô­meno da repres­são do con­teú­do afe­ti­vo.

Nes­se pro­ces­so, e numa série de outras situações aná­lo­gas, o poder é repre­sen­ta­do pela bus­ca e con­se­cução do infan­til, con­se­quen­te­men­te impli­ca a per­da da depen­dên­cia em relação às figu­ras de auto­ri­da­de, pois assu­me-se a igual­da­de em essas figu­ras, assu­me-se a pos­si­bi­li­da­de de que a rea­li­zação dos nos­sos desejos, da nos­sa feli­ci­da­de está em nós, não neces­sa­ria­men­te no outro. A negação des­sa pos­si­bi­li­da­de, des­se desejo, impli­ca a negação da auto­no­mia des­se sujei­to, a sua negação do poder em tro­ca da cer­te­za, da segu­ra­nça, da pro­teção e do carinho paren­tal, enten­di­do como aque­le advin­do das figu­ras asso­cia­das ao poder, que suprem neces­si­da­des, mas repre­sen­tam auto­ri­da­de.

Não obs­tan­te, a inter­pre­tação psi­ca­na­lí­ti­ca do poder não é a úni­ca. Entre outras, encon­tra­mos a aná­li­se mar­xis­ta do poder que tra­balhan­do no plano socio­ló­gi­co e eco­nô­mi­co, o carac­te­ri­za e deli­neia. Assim, para Marx o poder loca­li­za-se no Esta­do, ins­ti­tuição por exce­lên­cia cen­tra­li­za­do­ra e man­te­ne­do­ra des­te e, a função do pro­le­ta­ria­do (clas­se revo­lu­cio­ná­ria his­to­ri­ca­men­te deter­mi­na­da) é a toma­da do poder polí­ti­co ini­cian­do-se pela toma­da do Esta­do.

Lemos no Mani­fes­to Comu­nis­ta (Marx, K.; Engels, F. 1998): “Uma vez des­apa­re­ci­dos os anta­go­nis­mos de clas­se no cur­so do des­en­vol­vi­men­to, e sen­do con­cen­tra­da toda a pro­dução pro­pria­men­te dita nas mãos dos indi­ví­duos asso­cia­dos, o poder públi­co per­de­rá seu cará­ter polí­ti­co. O poder polí­ti­co é o poder orga­ni­za­do de uma clas­se para a opres­são de outra …” (p. 17). Ou seja, pode­mos enten­der que Marx pre­co­ni­za­va a toma­do do Esta­do dada a con­ver­gên­cia, num pri­mei­ro momen­to, entre o poder públi­co e o poder polí­ti­co sen­do que ele pro­punha a exti­nção do poder polí­ti­co.

O que nos inter­es­sa é a lei­tu­ra mar­xis­ta do poder, pois o autor o ana­li­sa e suge­re sua toma­da, ou seja, man­tém uma relação de con­fron­to com o poder, porém não o rene­gan­do, mas o valo­ri­za e demons­tra a neces­si­da­de de o uti­li­zar­mos.

Sobre a ideo­lo­gia, não é nos­sa inte­nção nes­te estu­do tra­balhar­mos com os vários con­cei­tos de ideo­lo­gia (Chauí, 2008). Inter­es­sa-nos a dis­cus­são e enten­di­men­to do con­cei­to em Marx, dado acre­di­tar­mos que uma ampla gama de crí­ti­cas diri­gi­das as defi­nições mar­xis­tas de fato diri­gem-se à uma lei­tu­ra espe­cí­fi­ca des­te, o que não con­diz com pos­sí­veis lei­tu­ras da ideo­lo­gia em Marx.

Encon­tra­mos na Ideo­lo­gia ale­mã (1979), obra de Marx e Engels, a con­ce­pção mais divul­ga­da e cri­ti­ca­da da ideo­lo­gia, ou seja, ela é vis­ta como uma más­ca­ra que escon­de as reais con­dições sociais e his­tó­ri­cas via um pro­ces­so de inver­são da reali­da­de. Ela esta­ria a ser­viço, úni­ca e exclu­si­va­men­te da clas­se domi­nan­te exis­tin­do, por­tan­to, como ideo­lo­gia domi­nan­te. Como vemos tra­ta-se de uma con­ce­pção res­tri­ta do con­cei­to, entre­tan­to não pode­mos afir­mar que seja essa a defi­nição mar­xis­ta de ideo­lo­gia.

Na obra Para a crí­ti­ca da eco­no­mia polí­ti­ca (Marx, 1859/1982) lemos que se tra­ta de um meio, lugar, no qual os homens se tor­nam cons­cien­tes da luta de clas­ses. Na obra As Lutas de clas­ses na Fra­nça (1848–1850/2012), tra­ta-se de um véu que impe­de as pes­soas a toma­da de cons­ciên­cia da luta de clas­ses. Entre­tan­to, no O Capi­tal (1867/1989) tra­ta-se de um sis­te­ma de valo­res, cre­nças, ideias ou teo­rias que ser­vem aos inter­es­ses de uma clas­se par­ti­cu­lar e, ain­da, se tomar­mos a obra mar­xis­ta no seu todo, encon­tra­mos nes­ta um sen­ti­do difu­so que con­cei­tua ideo­lo­gia como for­ma adqui­ri­da pelas ideias his­tó­ri­cas da épo­ca.

Como nota­mos, ao tra­balhar­mos com esse con­cei­to em Marx deve­mos tomar cui­da­do e não par­tir de uma espe­cí­fi­ca con­ce­pção res­tri­ta, no sen­ti­do de enten­der­mos uma espe­cí­fi­ca con­ce­pção como sen­do a úni­ca e ver­da­dei­ra­men­te mar­xis­ta. Acre­di­ta­mos que deve­mos inver­ter nos­sa pos­tu­ra e per­gun­tar o que levou Marx a tra­balhar esse con­cei­to, de quais afir­mações ele par­tir, o que ele se per­gun­tou em relação à ideo­lo­gia.

Enten­de­mos que Marx par­tiu basi­ca­men­te de duas afir­mações ao ten­tar enten­der a ideo­lo­gia: as ideias são pro­du­zi­das pelas con­dições socio­eco­nô­mi­cas e a mediação entre as ideias e a reali­da­de são rea­li­za­das pelas prá­ti­cas sociais. con­si­de­ran­do essas afir­mações ele per­gun­ta­va-se como as prá­ti­cas sociais são deter­mi­na­das, pro­cu­ran­do expli­car que as ideias se des­li­ga­ram da sua ori­gem mate­rial e se uni­ver­sa­li­za­ram no plano mera­men­te ideal no mun­do da men­te huma­na.

Em outras pala­vras, para Marx as relações sociais de pro­dução engen­dram as repre­sen­tações – a cons­ciên­cia. Então, como expli­car que uma gran­de par­ce­la da popu­lação ela­bo­ra repre­sen­tações dis­so­cia­das da sua reali­da­de mate­rial¿ A res­pos­ta encon­tra­da por Marx diz res­pei­to a ideo­lo­gia, enten­di­da como modo espe­cí­fi­co de exer­cí­cio de poder por par­te das clas­ses domi­nan­tes e do modo de pro­dução capi­ta­lis­ta ofus­ca os meca­nis­mos de sua per­pe­tuação eco­nô­mi­ca asso­cia­dos a mais-valia, bem como, dis­se­mi­na o dis­cur­so de que seu modo de pro­dução é uni­ver­sal.

Acre­di­ta­mos na via­bi­li­da­de de apon­tar a ques­tão des­sa for­ma e assim pro­cu­rar enten­dê-la, pois, como vemos a par­tir des­sas for­mu­lações nota­mos a gran­de preo­cu­pação do autor com a ques­tão da cons­ciên­cia social, ou seja, com a ques­tão de como a ideo­lo­gia se arti­cu­la e se sus­ten­ta ao nível do sujei­to e da sua clas­se. Assim, o dis­cur­so ideo­ló­gi­co é enten­di­do como dis­cur­so sobre o social rea­li­za­do como dis­cur­so úni­co e ver­da­dei­ro que ope­ra no plano trans­cen­den­tal como se esti­ves­se fora do cená­rio social.

Con­for­me apon­ta­mos ante­rior­men­te, enten­de­mos que a lei­tu­ra de Marx e de Freud, sobre o poder e sobre a ideo­lo­gia, pode auxi­liar em nos­so tra­balho, jus­ta­men­te pela dife­re­nça entre ambas. Assim, con­for­me apre­sen­ta­do, em nos­so enten­der Marx par­te de pro­po­sições e per­gun­tas com as quais con­cor­da­mos, porém, ele atua de for­ma uni­la­te­ral em suas res­pos­tas em deco­rrên­cia do cará­ter das suas preo­cu­pações. Uni­la­te­ral no sen­ti­do de que se apoia exclu­si­va­men­te no sujei­to da cons­ciên­cia. Não obs­tan­te, por seu turno Freud ao lon­go da sua obra diri­ge sua preo­cu­pação ao incons­cien­te como estru­tu­ra for­ma­do­ra e man­te­ne­do­ra do poder. Dele­gan­do as pul­sões e aos desejos a função que é dele­ga­da à ideo­lo­gia em Marx.

Em outras pala­vras, enten­de­mos que as duas pro­pos­tas se com­ple­men­tam e que pode­mos reco­rrer as duas para ana­li­sar­mos a ques­tão em estu­do. Ou seja, em que pese as dife­re­nças entre as duas pro­pos­tas da psi­ca­ná­li­se e do mar­xis­mo, em ter­mos do poder e da ideo­lo­gia no que se refe­re ao tema des­te arti­go, pode­mos reco­rrer a elas para ampliar e enri­que­cer nos­so tema de aná­li­se. De for­ma espe­cí­fi­ca, pode­mos per­gun­tar de que for­ma a ques­tão obser­va­da no Bra­sil sobre a dis­se­mi­nação do dis­cur­so de que a maio­ria da popu­lação não reconhe­ce e não legi­ti­ma as leis se rela­cio­na com o poder e a ideo­lo­gia. ¿Ain­da, como pode­mos con­si­de­rar os aspec­tos sociais e eco­nô­mi­cos, bem como, con­si­de­rar os aspec­tos sub­je­ti­vos, para tra­balhar essa ques­tão?

O poder, con­si­de­ran­do a pers­pec­ti­va mar­xis­ta que se apoia no sujei­to social e cog­nos­cen­te, loca­li­za-se no Esta­do. Con­soan­te a essa pers­pec­ti­va temos a lei­tu­ra sobre a ideo­lo­gia que enten­de que a sua super­ação pos­si­bi­li­ta o aflo­ra­men­to da cons­ciên­cia social. Freud, por seu lado, abre caminho para o exer­cí­cio de ações trans­for­ma­do­ras por par­te do sujei­to ao loca­li­zar o poder como tam­bém alo­ja­do no incons­cien­te, demons­tran­do a impor­tân­cia de con­si­de­ra­mos essa ins­tân­cia psí­qui­ca no ques­tio­na­men­to da socie­da­de e da sub­je­ti­vi­da­de con­ser­va­do­ras.

A popu­lação envol­ta nas arti­manhas do poder e da ideo­lo­gia engen­dra­das pela eli­te eco­nô­mi­ca e social encon­tra difi­cul­da­de em per­ce­ber a teia ideo­ló­gi­ca e de poder na qual vive enre­da­da. Em ter­mos de des­igual­da­de social o coti­diano envol­ve as pes­soas em repre­sen­tações e dis­cur­sos ideo­ló­gi­cos que atri­buem as cama­das des­fa­vo­re­ci­das o este­reó­ti­po de trans­gres­so­res que não cum­prem a lei. Ain­da, o lugar social que essa par­ce­la da popu­lação ocu­pa difi­cul­ta o ques­tio­na­men­to des­sas repre­sen­tações ideo­ló­gi­cas, pois, o poder ope­ra pro­pi­cian­do que ins­ti­tuições como o governo e jurí­di­cas refe­ren­dem não ape­nas o lugar social, como tam­bém as prá­ti­cas e dis­cur­sos que o sus­ten­tam.

No plano his­tó­ri­co esse con­tex­to expli­ci­ta a des­qua­li­fi­cação da lei jurí­di­ca, ou seja, o con­tra­to social que sus­ten­ta a regu­lação social per­de a sua efi­cá­cia. Con­co­mi­tan­te, a ins­crição da Lei no plano psí­qui­co oco­rre a par­tir da apro­priação sin­gu­lar do sujei­to face a rede cole­ti­va sim­bó­li­ca. A rede sim­bó­li­ca dis­po­ni­bi­li­za­da aos sujei­tos para o seu tra­balho de orga­ni­zação sub­je­ti­va apre­sen­ta-se des­co­la­da em relação a prá­ti­cas sociais e as expe­riên­cias coti­dia­nas. As regras esta­be­le­ci­das no con­tra­to social dizem res­pei­to a lei uni­ver­sal e a adoção de valo­res que supõem a igual­da­de de direi­tos e o con­co­mi­tan­te reconhe­ci­men­to do outro. Assim, a ideia dis­se­mi­na­da em nos­sa cul­tu­ra, de que aque­les per­ten­cen­tes às cama­das eco­no­mi­ca­men­te des­fa­vo­re­ci­das são fre­quen­te­men­te trans­gres­so­res e irres­pon­sá­veis e de aque­les per­ten­cen­tes as clas­ses média e alta, não se enqua­dram nes­se per­fil, não se sus­ten­ta (Sou­za, 2017; Pelle­grino, 1987; Altoé, 2007). Ain­da, aqui a con­ce­pção freu­dia­na do incons­cien­te auxi­lia a com­preen­der como a cons­ti­tuição sub­je­ti­va pode ade­rir as inju­nções do poder e do dis­cur­so do outro.

Con­si­de­ran­do o con­tex­to apre­sen­ta­do aci­ma, pode­mos enten­der que esse cená­rio esti­mu­la a exclu­são e des­qua­li­fi­cação do outro. Ato con­tí­nuo, temos a pro­dução sub­je­ti­va e a orga­ni­zação ins­ti­tu­cio­nal atre­la­das a esse cená­rio, ou seja, a sub­je­ti­vi­da­de é atra­ves­sa­da pelo nar­ci­sis­mo e pelo desejo de gozo ime­dia­to e ten­de a excluir e des­qua­li­fi­car o outro, con­soan­te a ade­são das ins­ti­tuições a essa lei­tu­ra. No caso das ins­ti­tuições jurí­di­cas pode­mos obser­var que cada vez mais elas se asso­ciam aos inter­es­ses libe­rais, clas­sis­tas e mui­tas vezes, ope­ram a par­tir des­ses inter­es­ses e não em prol da jus­tiça.

Como apon­ta Butler (2015) “No entan­to, não deve­ría­mos con­cluir que a deter­mi­nação legal da cul­pa ou da inocên­cia seja o mes­mo que reconhe­ci­men­to social. Na ver­da­de o reconhe­ci­men­to mui­tas vezes nos obri­ga a sus­pen­der o juí­zo para poder­mos apreen­der o outro.” (p. 63). Nes­sa pers­pec­ti­va, a ques­tão de que a maio­ria da popu­lação bra­si­lei­ra se encon­tra em situações de juí­zo, ou seja, jurí­di­ca, nas quais é con­si­de­ra­da trans­gres­so­ra não sig­ni­fi­ca que ela de fato seja, pois, temos aqui a ques­tão do poder e da ideo­lo­gia pro­du­zin­do os pro­ces­sos jurí­di­cos e a apli­cação da lei e for­ma des­igual e injus­ta para com as pes­soas que com­põem a cama­da pobre e dis­cri­mi­na­da cul­tu­ral­men­te. Ain­da, o reconhe­ci­men­to social que essa maio­ria da popu­lação deman­da a leva a pro­du­zir for­mas sin­gu­la­res e espe­cí­fi­cas de vivên­cia da lei, para além da pres­crição jurí­di­ca e for­mal (Souza,2017; Altoé, 2007).

Algumas conclusões

As narra­ti­vas cons­truí­das sobre o povo bra­si­lei­ro, no caso espe­cí­fi­co sobre as cama­das pobres e sobre aque­las cama­das que não corres­pon­dem aos padrões da eli­te cul­tu­ral eco­no­mi­ca­men­te favo­re­ci­da, são jus­ta­men­te ela­bo­ra­das pela eli­te bra­si­lei­ra. Essas narra­ti­vas cons­truí­das por essa eli­te des­qua­li­fi­cam a popu­lação que não corres­pon­de aos padrões cul­tu­rais e eco­nô­mi­cos domi­nan­tes, bem como, elas se sus­ten­tam e se dis­se­mi­nam jus­ta­men­te pelo poder dos gru­pos domi­nan­tes, bem como, pela ideo­lo­gia que cir­cu­la na rede social. As eli­tes têm aces­so as mídias, aos gover­nos, aos espaços jurí­di­cos, as uni­ver­si­da­des e, des­sa for­ma, con­se­guem pro­du­zir e dis­se­mi­nar dis­cur­sos que apon­tam o bra­si­lei­ro per­ten­cen­te a clas­se domi­na­da eco­nô­mi­ca e cul­tu­ral­men­te como trans­gres­sor e des­cum­pri­dor das leis, den­tre outros este­reó­ti­pos sobre a popu­lação nacio­nal.

Não obs­tan­te, a atri­buição da prá­ti­ca trans­gres­si­va a cama­da espe­cí­fi­ca da popu­lação não se sus­ten­ta, pois bas­ta veri­fi­car os índi­ces de corru­pção e das varia­das for­mas de des­cum­pri­men­to da lei para veri­fi­car­mos que essas ações são pra­ti­ca­das por pes­soas ori­gi­ná­rias de todos as cama­das sociais, eco­nô­mi­cas e inte­lec­tuais da popu­lação bra­si­lei­ra. Inúme­ros pro­fis­sio­nais, pes­qui­sa­do­res das mais diver­sas áreas do conhe­ci­men­to apon­tam para o fato de que não se sus­ten­ta o dis­cur­so domi­nan­te que apon­ta os pobres e aque­les que não corres­pon­dem aos padrões ideias da eli­te como os que com­põem a par­ce­la da popu­lação bra­si­lei­ra que des­cum­pre as leis (Pao­li, M. C., Bene­vi­des, M. V., Pinhei­ro, P. S., Da Mat­ta, R., 1982; Nery, M., Adorno, S., 2013).

A expe­riên­cia da lei e com a lei acon­te­ce na rede social bra­si­lei­ra a par­tir de uma orga­ni­zação social e ins­ti­tu­cio­nal na qual são dis­se­mi­na­dos dis­cur­sos e prá­ti­cas que apre­goam os valo­res da socie­da­de moder­na como a cida­da­nia, a sepa­ração do públi­co e do pri­va­do, a jus­tiça para todos, a igual­da­de, den­tre outros. Porém, temos a ope­rar a dis­cri­mi­nação da lei, ou seja, a lei vale para aque­les per­ten­cen­tes as cama­das pri­vi­le­gia­das da popu­lação, sen­do que os que per­ten­cem as cama­das des­pri­vi­le­gia­das em ter­mos eco­nô­mi­cos, ou cul­tu­rais, den­tre outros aspec­tos, não rece­be o tra­ta­men­to de igual­da­de e de direi­tos ofe­re­ci­dos nas leis jurí­di­cas (Sou­za, 2017). Ain­da, temos a ope­rar a per­ver­são da éti­ca, pois loca­li­za­mos a dis­so­ciação entre a pres­crição jurí­di­ca e o dis­cur­so moderno em con­tra­pon­to a prá­ti­cas ins­ti­tu­cio­nais que não apli­cam a juris­dição a maio­ria da popu­lação. Temos a cap­tu­ra das sub­je­ti­vi­da­des e das ins­ti­tuições que pas­sam a ope­rar a con­tra­mãos das leis jurí­di­cas pres­cri­tas nas nor­mas e nos códi­gos jurí­di­cos.

Des­sa for­ma, a repre­sen­tação dos bra­si­lei­ros como trans­gres­so­res e pra­ti­can­tes da ins­tru­men­ta­li­zação da lei, pro­duz uma ima­gem dis­tor­ci­da sobre a socie­da­de nacio­nal e a cons­trução de uma “pos­sí­vel jus­ti­fi­ca­ti­va” às trans­gres­sões. Essa ope­ração leva as pes­soas a acre­di­ta­rem que “se todos fazem, eu tam­bém devo fazer” ou “se alguém não pra­ti­cou uma trans­gres­são é por­que não teve opor­tu­ni­da­de”. Pro­duz-se, assim, a per­ver­são da éti­ca que sus­ten­ta o pro­je­to moderno, via a des­qua­li­fi­cação da sua efi­cá­cia como prin­cí­pio regu­la­dor da vida asso­cia­ti­va e a des­qua­li­fi­cação dos que ado­tam o prin­cí­pio da lei uni­ver­sal como valor, que pas­sam a ser con­si­de­ra­dos ingê­nuos ou idea­lis­tas.

Fren­te a esse cená­rio enten­de­mos que a crí­ti­ca dire­cio­na­da ao poder e a ideo­lo­gia, que auxi­liam na manu­te­nção de dis­cur­sos que pro­du­zem a per­ver­são da éti­ca e a cons­trução de este­reó­ti­pos sobre a popu­lação nacio­nal, podem auxi­liar no des­mon­te des­ses dis­cur­sos. Tam­bém, o reconhe­ci­men­to da sub­je­ti­vi­da­de cin­di­da, con­for­me apon­ta Freud (1919/1977), pos­si­bi­li­ta o ques­tio­na­men­to da orga­ni­zação sub­je­ti­va e pode auxi­liar na muda­nça da relação esta­be­le­ci­da pelo sujei­to con­si­go mes­mo e com o outro. O con­ta­to com o novo em ter­mos de muda­nça na relação com o poder e com o dis­cur­so ideo­ló­gi­co, neces­si­ta que o sujei­to tenha con­dições sub­je­ti­vas para ques­tio­nar suas cer­te­zas, poden­do reconhe­cer e sus­ten­tar o con­ta­to com o outro, interno e externo, sem sen­tir-se dema­sia­da­men­te ameaça­do. Des­sa for­ma, ele pode pen­sar sobre os este­reó­ti­pos cons­truí­dos pelo dis­cur­so ofi­cial, e enxer­gar a pos­si­bi­li­da­de de reconhe­cer o novo não ape­nas como estranho, e sen­tir que é viá­vel des­es­ta­bi­li­zar as repre­sen­tações ela­bo­ra­das pela eli­te.

Referências

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Notas

  1. Pro­fes­so­ra e Pes­qui­sa­do­ra no Pro­gra­ma de Pós-Gra­duação em Psi­co­lo­gia na UFSC – Uni­ver­si­da­de Fede­ral de San­ta Cata­ri­na – Bra­sil. Dou­to­ra em Psi­co­lo­gia Clí­ni­ca na PUC – SP – Bra­sil. E‑mail: meritisouza@yahoo.com.br