Leis, poder e ideologia: crítica ao discurso sobre a transgressão no Brasil
Mériti de Souza[1]
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil
Resumo
Circula na rede social brasileira o discurso que aponta o brasileiro como constituído por uma subjetividade transgressora com dificuldade de acatar a lei. Esse discurso desqualifica a população nacional e esconde a realidade sobre as práticas jurídicas vigentes no país. Para trabalhar essa questão realizamos um estudo utilizando recursos da psicanálise e do marxismo, analisando o poder, a ideologia, a subjetividade, na construção do discurso da transgressão inerente ao brasileiro. Vigora no país o discurso moderno sobre a concepção da lei e da igualdade como valores universais, porém, na prática essa concepção vigora apenas para a elite econômica e cultural. Assim, a maioria da população questiona a instituição jurídica, porém, reconhece a lei. Entretanto, o discurso sobre a transgressão do brasileiro permanece disseminado pois serve a manutenção do poder e do status quo pela elite.
Palavras-chave: transgressão; Brasil; ideologia; poder.
Resumen
Circula en las redes sociales brasileñas el discurso de que el ciudadano brasileño está constituido por una subjetividad transgresora y con problemas para acatar la ley. Ese discurso descalifica a la población nacional y esconde la realidad sobre las prácticas jurídicas vigentes en el país. Para trabajar en ese asunto hemos realizado un estudio utilizando recursos del psicoanálisis y del marxismo, analizando el poder, la ideología y la subjetividad en la construcción del discurso de la transgresión inherente al ciudadano brasileño. Existe en el país el discurso moderno sobre la concepción da ley y de la igualdad como valores universales. Sin embargo, en la práctica, esa concepción se aplica apenas para la elite económica y cultural. Así, la mayoría de la población cuestiona a la institución jurídica, pero reconoce a la ley. El discurso sobre la transgresión del ciudadano brasileño permanece diseminado porque sirve para mantener el poder y el statu quo de la elite.
Palabras clave: transgresión, Brasil, ideología, poder.
Introdução
No atual cenário brasileiro encontramos discursos que associam a transgressão e a falta de ética a brasilidade, bem como, associam esses aspectos a pessoas oriundas de grupos sociais de baixa renda e a grupos culturalmente desqualificados. Ou seja, encontramos disseminada na rede social e entre profissionais de diferentes abordagens a representação de que o brasileiro teria dificuldade subjetiva na inscrição psíquica da lei, bem como, teria dificuldade no cumprimento da lei jurídica, o que redundaria na sua falta de capacidade ética. Discordamos da pretensa anomia constitutiva do brasileiro embora reconheçamos a discrepância entre a lei formal e a lei praticada no cotidiano, da mesma forma que reconhecemos a impunidade que predomina no Brasil associada a discrepância na aplicação da lei jurídica às diferentes camadas da população (Da Matta, 1983, 1984; Barbosa, 1992; Calligaris, 2000; Birman, 2001).
Entendemos que o cenário acima colabora com a disseminação da concepção de que o povo brasileiro apresentaria dificuldades na construção e exercício da prática da lei e da ética. Porém, também entendemos que essa concepção se associa a específico discurso que circula na rede social brasileira. Assim, a elite que exerce o poder no país divulga o discurso de que no país vigoram instituições e práticas modernas e éticas, sendo que parcela da população que compõe as camadas pobres não consegue exercer essas práticas éticas. Conforme apontamos discordamos desse discurso e entendemos que em qualquer sociedade, encontramos pessoas que exercem práticas éticas e lidam com a lei, assumindo as leis presentes nas instituições, bem como, incorporando a lei no plano subjetivo, independente da posição social e econômica ocupada (Souza, 2017).
Não obstante, consideramos que a concepção moderna sobre o sujeito como exclusivamente cognoscente e ético e capaz de conhecer plenamente a realidade e agir sobre ela de forma racional e ética, se revela idealizada à medida que estabelece uma relação linear e causal entre essa concepção da constituição subjetiva e a ação do sujeito na prática social. Em outras palavras, o ponto de sutura que associa o ideal moderno de conquista da cidadania ao trabalho exclusivo da consciência se explicita na concepção iluminista que advoga a assunção do sujeito racional e ético a partir do exercício da cidadania conforme prescrita pelo contrato social. Assim, segundo essa premissa moderna a conquista da cidadania operaria um efeito subjetivo imediato e linear em relação à reorganização subjetiva e cognoscente, pois, a conquista desse lugar social possibilitaria a assunção da razão por meio do trabalho de contenção das paixões redundando necessariamente no lugar ético ocupado pelo sujeito na relação com o outro (Bauman, 2001; Berman, 1986; Jameson, 1996).
Em suma, por um lado, temos a concepção moderna sobre o sujeito cognoscente e ético que utiliza concepções idealizadas sobre o sujeito e adota o pressuposto de que a assunção da cidadania viabilizaria a mudança subjetiva com o estabelecimento da capacidade e do exercício ético. Por outro, temos a concepção de que sociedades definidas como modernas seriam conformadas por sujeitos éticos ou em condições de se tornarem éticos. No contraponto, sociedade definidas como em via de transição para a modernidade apresentariam dificuldade tanto no plano social e institucional, quanto no plano subjetivo, sendo que seus habitantes apresentariam dificuldades no plano ético. Conforme essas análises o Brasil, pais em condições de transição para a modernidade apresentaria dificuldades na produção social de instituições e práticas e na produção subjetiva de sujeitos direcionados ao exercício do cumprimento da lei e da ética.
A partir desse contexto, interessa-nos problematizar a experiência com a lei que atravessa o cenário brasileiro. Assim, nos mobiliza o interesse por analisar a relação estabelecida entre prática transgressiva e perversão da ética na sua interface com o outro que atravessa a constituição subjetiva, considerando os aspectos do poder e da ideologia. Para tanto em termos de estratégia metodológica recorremos à análise teórica a partir de autores originários de áreas do conhecimento que trabalham com concepções marxistas e freudianas para analisar as concepções de ideologia e de poder e suas associações com a disseminação de discursos pela elite com objetivo de desqualificar camadas pobres da população. Também recorremos a autores originários da psicanálise e da psicologia para analisar a questão da inscrição da lei em termos subjetivos, considerando essa questão no cenário brasileiro.
Efeitos institucionais e subjetivos da perversão da ética.
As regras estabelecidas no contrato social moderno dizem respeito a lei universal e a adoção de valores que supõem a igualdade de direitos e o concomitante reconhecimento do outro. Entretanto, no Brasil, apesar das leis e normas jurídicas encontrarem-se definidas conforme essas normas e leis, as práticas cotidianas e mesmo um discurso que se repete à exaustão afirmam que ampla parcela da população, no caso pessoas pobres e culturalmente discriminada, não reconhecem as leis e apresentam dificuldades de inscrição da lei no plano subjetivo. Nesse cenário ocorre a disseminação da concepção de que a maioria da população é desqualificada e temos a desigualdade operando tanto no plano social e econômico quanto no plano subjetivo. O outro que não pertence a elite social e econômica do país é transformado em objeto, pois supostamente não consegue corresponder a condição de cidadão.
É conhecido o conceito de banalização do mal, cunhado por Hannah Arendt na obra Eichmann em Jerusalém (1999). Ao acompanhar o julgamento de Eichmann a autora argumenta que ele não manifesta responsabilidade ou culpa perante a morte de milhares de pessoas nos campos de concentração nazistas. Ele apenas menciona que cumpria ordens e paradoxalmente, procura se justificar insinuando que não tinha uma alternativa e que cumpria bem suas funções burocráticas.
A partir do relato de Arendt (1999) é possível entender que Eichmann se coloca em uma posição subjetiva na qual não se implica na relação com o outro. Ou seja, a responsabilidade perante o outro, a culpa ou, paradoxalmente, o ódio, indicam algum tipo de reconhecimento do outro. Porém, no discurso no qual o sujeito se coloca na posição de que era um funcionário exemplar e que apenas cumpria ordens, podemos pensar que a relação com o outro está escamoteada e que esse sujeito se encontra na posição de alienação face ao outro e face a sua própria subjetividade. No caso, também podemos pensar que a rede social e a modulação subjetivação estão atravessadas pelo poder e pela ideologia, como processos que dificultam ao sujeito sua percepção da realidade e do outro.
A psicanálise nos mostra que o outro tanto é importante para o sujeito na vida cotidiana quanto é necessário para a constituição subjetiva do humano. Porém, na rede social contemporânea o outro também está a assumir a condição de perigoso, sendo entendido inclusive como um perigo para o sujeito. Vários autores nos mostram que essa leitura acontece em decorrência da predominância das modalidades subjetivas atuais que levam as pessoas a se constituírem de forma extremamente narcisista e direcionadas ao gozo imediato. Dessa forma, o outro pode ser tornar um empecilho para o narcisismo e para o gozo do sujeito, já que ele encarna a diferença e a alteridade em relação ao desejo do sujeito (Freire Costa, 1986; 1994; Lasch, 1983).
Como aponta Freud (1914/2004) o narcisismo é necessário à constituição subjetiva, porém, o que vemos é seu incremento e seus efeitos na relação com o outro. Em outras palavras, como afirma Freire Costa (1986, 1994) a rede social brasileira é atravessada pelo narcisismo o que ajuda na produção de sujeitos que não se implicam, não se responsabilizam. Nesse contexto o outro não funciona mais como valor e sim apenas para sustentar o lugar do sujeito. Temos um terreno propício para a perversão da lei e da ética, pois a culpa em relação a condição do outro ou o seu reconhecimento perdem eficácia.
O psicanalista Hélio Pellegrino (1987) afirma que “o pobre absoluto não tem por que manter o pacto social com uma sociedade que o reduz à condição de detrito, ao mesmo tempo que, em seus estratos dirigentes, se entrega à corrupção e ao deboche impune. Ele tem toda razão de odiar e repelir essa sociedade” (p.204).
Podemos entender que no Brasil as instituições jurídicas, em suas várias modalidades, mantem leis explícitas escritas nas legislações que afirmam a igualdade, porém, existem leis não explicitas, não escritas, mas que funcionam na prática, que afirmam que “nem todos são iguais perante as leis”, principalmente os pobres e os discriminados culturalmente. Temos aqui a perversão da lei e da ética. Continuando e ampliando o raciocínio, também é possível inferir que o poder exerce importante papel na elaboração dessa perversão social. Esse problema nos leva a reconhecer a questão do poder como importante na produção da perversão da ética e da lei, bem como, aponta à necessidade da sua investigação. Parece-nos que esse pacto perverso opera na rede social nacional, pois a realidade de que a legislação jurídica é escrita para servir apenas uma parcela da população é operacionalizada pela elite que instrumentaliza a lei. Ato contínuo, a maioria da população desconhece essa realidade e é capturada pelas artimanhas do poder e da ideologia.
Para lidar com esses discursos que conseguem hegemonia no cenário nacional e buscam desqualificar uma parcela da população entendemos ser importante apontar a existência na sociedade classista na qual vivemos das hierarquias e suas estratégias organizadas nos planos institucionais e nos modos de subjetivar que sustentam o poder. Importante aqui retomar as concepções clássicas que analisam as estratégias presentes nos cenários sociais e subjetivos que procuram manter as hierarquias e a realidade classista. Também, parece importante retomar os estudos sobre o poder e sobre a ideologia, considerando que no plano coletivo e das sociedades, bem como, no plano subjetivo, temos essas estratégias operando e produzindo a sustentação dos discursos que discriminam e desqualificam as classes dominadas. Ou seja, consideramos importante retomar aqui leituras da psicanálise e do marxismo sobre o poder e a ideologia, considerando que elas podem auxiliar na compreensão do nosso tema de estudo, já que elas incidem nos aspectos da rede social e da subjetividade. Essas leituras, ainda que diferentes, e justamente pela sua diferença, podem ampliar o referencial analítico e nos ajudar a trabalhar a questão da relação da população brasileira com as leis. Assim, retomamos aqui alguns aspectos dos clássicos estudos de Marx e de Freud sobre o poder e sobre a ideologia.
Rede Social e subjetividade: poder e ideologia
Tratando-se da ideologia e do poder acreditamos que essas sejam questões chaves na relação do sujeito com o outro e com a desigualdade, nas modalidades da rede social e da subjetividade. Entendemos que no caso do poder temos uma leitura majoritária marxista segundo a qual o poder se debate entre o partido, o Estado e os movimentos da sociedade civil (Marx, 1859/ 1982; 1848–1850/2012). No caso do psiquismo, o poder é entendido na leitura psicanalítica como o embate entre as pulsões e a repressão interna e externa, ou seja, entre as instâncias psíquicas do eu, do supere e do id (Freud, 1919/1977; 1930/ 1977).
Freud já apontou que o poder é vivido pela criança de forma ambígua. Ela deseja o poder do adulto, que se confunde com seu próprio poder (o adulto satisfaz ou não suas necessidades de carinho, proteção, cuidados físicos, dentre outras). Entretanto, a partir da sua história de vida, sentimentos conflitantes como o amor e o ódio gerados pela mesma pessoa, irão imbricar-se, levando a criança a deseja e a repudiar o poder. Exemplificando, o poder pode ser representado pela criança como o desejo de repudiar a mãe que demora a dar-lhe o leite, porém, essa mesma mãe já a alimentou a protegeu anteriormente, daí essa criança afasta esse sentimento de ódio reprimindo‑o, tornando‑o inconsciente, e junto com essa situação cria-se uma outra: a ambiguidade de sentimentos para com o poder, no caso, o desejo e o repúdio.
Sabemos também o quanto o poder se liga à figura paterna (o próprio pai ou uma figura que o substituiu) de várias formas. Numa primeira instância via o conhecido complexo de Édipo, onde a criança deseja a exclusividade do amor e o carinho do progenitor do sexo oposto, passando a se identificar com a figura do mesmo sexo que detém esse carinho. Porém, essa figura com a qual ela se identificou também lhe desperta sentimentos ambivalentes, repetindo-se o fenômeno da repressão do conteúdo afetivo.
Nesse processo, e numa série de outras situações análogas, o poder é representado pela busca e consecução do infantil, consequentemente implica a perda da dependência em relação às figuras de autoridade, pois assume-se a igualdade em essas figuras, assume-se a possibilidade de que a realização dos nossos desejos, da nossa felicidade está em nós, não necessariamente no outro. A negação dessa possibilidade, desse desejo, implica a negação da autonomia desse sujeito, a sua negação do poder em troca da certeza, da segurança, da proteção e do carinho parental, entendido como aquele advindo das figuras associadas ao poder, que suprem necessidades, mas representam autoridade.
Não obstante, a interpretação psicanalítica do poder não é a única. Entre outras, encontramos a análise marxista do poder que trabalhando no plano sociológico e econômico, o caracteriza e delineia. Assim, para Marx o poder localiza-se no Estado, instituição por excelência centralizadora e mantenedora deste e, a função do proletariado (classe revolucionária historicamente determinada) é a tomada do poder político iniciando-se pela tomada do Estado.
Lemos no Manifesto Comunista (Marx, K.; Engels, F. 1998): “Uma vez desaparecidos os antagonismos de classe no curso do desenvolvimento, e sendo concentrada toda a produção propriamente dita nas mãos dos indivíduos associados, o poder público perderá seu caráter político. O poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra …” (p. 17). Ou seja, podemos entender que Marx preconizava a tomado do Estado dada a convergência, num primeiro momento, entre o poder público e o poder político sendo que ele propunha a extinção do poder político.
O que nos interessa é a leitura marxista do poder, pois o autor o analisa e sugere sua tomada, ou seja, mantém uma relação de confronto com o poder, porém não o renegando, mas o valoriza e demonstra a necessidade de o utilizarmos.
Sobre a ideologia, não é nossa intenção neste estudo trabalharmos com os vários conceitos de ideologia (Chauí, 2008). Interessa-nos a discussão e entendimento do conceito em Marx, dado acreditarmos que uma ampla gama de críticas dirigidas as definições marxistas de fato dirigem-se à uma leitura específica deste, o que não condiz com possíveis leituras da ideologia em Marx.
Encontramos na Ideologia alemã (1979), obra de Marx e Engels, a concepção mais divulgada e criticada da ideologia, ou seja, ela é vista como uma máscara que esconde as reais condições sociais e históricas via um processo de inversão da realidade. Ela estaria a serviço, única e exclusivamente da classe dominante existindo, portanto, como ideologia dominante. Como vemos trata-se de uma concepção restrita do conceito, entretanto não podemos afirmar que seja essa a definição marxista de ideologia.
Na obra Para a crítica da economia política (Marx, 1859/1982) lemos que se trata de um meio, lugar, no qual os homens se tornam conscientes da luta de classes. Na obra As Lutas de classes na França (1848–1850/2012), trata-se de um véu que impede as pessoas a tomada de consciência da luta de classes. Entretanto, no O Capital (1867/1989) trata-se de um sistema de valores, crenças, ideias ou teorias que servem aos interesses de uma classe particular e, ainda, se tomarmos a obra marxista no seu todo, encontramos nesta um sentido difuso que conceitua ideologia como forma adquirida pelas ideias históricas da época.
Como notamos, ao trabalharmos com esse conceito em Marx devemos tomar cuidado e não partir de uma específica concepção restrita, no sentido de entendermos uma específica concepção como sendo a única e verdadeiramente marxista. Acreditamos que devemos inverter nossa postura e perguntar o que levou Marx a trabalhar esse conceito, de quais afirmações ele partir, o que ele se perguntou em relação à ideologia.
Entendemos que Marx partiu basicamente de duas afirmações ao tentar entender a ideologia: as ideias são produzidas pelas condições socioeconômicas e a mediação entre as ideias e a realidade são realizadas pelas práticas sociais. considerando essas afirmações ele perguntava-se como as práticas sociais são determinadas, procurando explicar que as ideias se desligaram da sua origem material e se universalizaram no plano meramente ideal no mundo da mente humana.
Em outras palavras, para Marx as relações sociais de produção engendram as representações – a consciência. Então, como explicar que uma grande parcela da população elabora representações dissociadas da sua realidade material¿ A resposta encontrada por Marx diz respeito a ideologia, entendida como modo específico de exercício de poder por parte das classes dominantes e do modo de produção capitalista ofusca os mecanismos de sua perpetuação econômica associados a mais-valia, bem como, dissemina o discurso de que seu modo de produção é universal.
Acreditamos na viabilidade de apontar a questão dessa forma e assim procurar entendê-la, pois, como vemos a partir dessas formulações notamos a grande preocupação do autor com a questão da consciência social, ou seja, com a questão de como a ideologia se articula e se sustenta ao nível do sujeito e da sua classe. Assim, o discurso ideológico é entendido como discurso sobre o social realizado como discurso único e verdadeiro que opera no plano transcendental como se estivesse fora do cenário social.
Conforme apontamos anteriormente, entendemos que a leitura de Marx e de Freud, sobre o poder e sobre a ideologia, pode auxiliar em nosso trabalho, justamente pela diferença entre ambas. Assim, conforme apresentado, em nosso entender Marx parte de proposições e perguntas com as quais concordamos, porém, ele atua de forma unilateral em suas respostas em decorrência do caráter das suas preocupações. Unilateral no sentido de que se apoia exclusivamente no sujeito da consciência. Não obstante, por seu turno Freud ao longo da sua obra dirige sua preocupação ao inconsciente como estrutura formadora e mantenedora do poder. Delegando as pulsões e aos desejos a função que é delegada à ideologia em Marx.
Em outras palavras, entendemos que as duas propostas se complementam e que podemos recorrer as duas para analisarmos a questão em estudo. Ou seja, em que pese as diferenças entre as duas propostas da psicanálise e do marxismo, em termos do poder e da ideologia no que se refere ao tema deste artigo, podemos recorrer a elas para ampliar e enriquecer nosso tema de análise. De forma específica, podemos perguntar de que forma a questão observada no Brasil sobre a disseminação do discurso de que a maioria da população não reconhece e não legitima as leis se relaciona com o poder e a ideologia. ¿Ainda, como podemos considerar os aspectos sociais e econômicos, bem como, considerar os aspectos subjetivos, para trabalhar essa questão?
O poder, considerando a perspectiva marxista que se apoia no sujeito social e cognoscente, localiza-se no Estado. Consoante a essa perspectiva temos a leitura sobre a ideologia que entende que a sua superação possibilita o afloramento da consciência social. Freud, por seu lado, abre caminho para o exercício de ações transformadoras por parte do sujeito ao localizar o poder como também alojado no inconsciente, demonstrando a importância de consideramos essa instância psíquica no questionamento da sociedade e da subjetividade conservadoras.
A população envolta nas artimanhas do poder e da ideologia engendradas pela elite econômica e social encontra dificuldade em perceber a teia ideológica e de poder na qual vive enredada. Em termos de desigualdade social o cotidiano envolve as pessoas em representações e discursos ideológicos que atribuem as camadas desfavorecidas o estereótipo de transgressores que não cumprem a lei. Ainda, o lugar social que essa parcela da população ocupa dificulta o questionamento dessas representações ideológicas, pois, o poder opera propiciando que instituições como o governo e jurídicas referendem não apenas o lugar social, como também as práticas e discursos que o sustentam.
No plano histórico esse contexto explicita a desqualificação da lei jurídica, ou seja, o contrato social que sustenta a regulação social perde a sua eficácia. Concomitante, a inscrição da Lei no plano psíquico ocorre a partir da apropriação singular do sujeito face a rede coletiva simbólica. A rede simbólica disponibilizada aos sujeitos para o seu trabalho de organização subjetiva apresenta-se descolada em relação a práticas sociais e as experiências cotidianas. As regras estabelecidas no contrato social dizem respeito a lei universal e a adoção de valores que supõem a igualdade de direitos e o concomitante reconhecimento do outro. Assim, a ideia disseminada em nossa cultura, de que aqueles pertencentes às camadas economicamente desfavorecidas são frequentemente transgressores e irresponsáveis e de aqueles pertencentes as classes média e alta, não se enquadram nesse perfil, não se sustenta (Souza, 2017; Pellegrino, 1987; Altoé, 2007). Ainda, aqui a concepção freudiana do inconsciente auxilia a compreender como a constituição subjetiva pode aderir as injunções do poder e do discurso do outro.
Considerando o contexto apresentado acima, podemos entender que esse cenário estimula a exclusão e desqualificação do outro. Ato contínuo, temos a produção subjetiva e a organização institucional atreladas a esse cenário, ou seja, a subjetividade é atravessada pelo narcisismo e pelo desejo de gozo imediato e tende a excluir e desqualificar o outro, consoante a adesão das instituições a essa leitura. No caso das instituições jurídicas podemos observar que cada vez mais elas se associam aos interesses liberais, classistas e muitas vezes, operam a partir desses interesses e não em prol da justiça.
Como aponta Butler (2015) “No entanto, não deveríamos concluir que a determinação legal da culpa ou da inocência seja o mesmo que reconhecimento social. Na verdade o reconhecimento muitas vezes nos obriga a suspender o juízo para podermos apreender o outro.” (p. 63). Nessa perspectiva, a questão de que a maioria da população brasileira se encontra em situações de juízo, ou seja, jurídica, nas quais é considerada transgressora não significa que ela de fato seja, pois, temos aqui a questão do poder e da ideologia produzindo os processos jurídicos e a aplicação da lei e forma desigual e injusta para com as pessoas que compõem a camada pobre e discriminada culturalmente. Ainda, o reconhecimento social que essa maioria da população demanda a leva a produzir formas singulares e específicas de vivência da lei, para além da prescrição jurídica e formal (Souza,2017; Altoé, 2007).
Algumas conclusões
As narrativas construídas sobre o povo brasileiro, no caso específico sobre as camadas pobres e sobre aquelas camadas que não correspondem aos padrões da elite cultural economicamente favorecida, são justamente elaboradas pela elite brasileira. Essas narrativas construídas por essa elite desqualificam a população que não corresponde aos padrões culturais e econômicos dominantes, bem como, elas se sustentam e se disseminam justamente pelo poder dos grupos dominantes, bem como, pela ideologia que circula na rede social. As elites têm acesso as mídias, aos governos, aos espaços jurídicos, as universidades e, dessa forma, conseguem produzir e disseminar discursos que apontam o brasileiro pertencente a classe dominada econômica e culturalmente como transgressor e descumpridor das leis, dentre outros estereótipos sobre a população nacional.
Não obstante, a atribuição da prática transgressiva a camada específica da população não se sustenta, pois basta verificar os índices de corrupção e das variadas formas de descumprimento da lei para verificarmos que essas ações são praticadas por pessoas originárias de todos as camadas sociais, econômicas e intelectuais da população brasileira. Inúmeros profissionais, pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento apontam para o fato de que não se sustenta o discurso dominante que aponta os pobres e aqueles que não correspondem aos padrões ideias da elite como os que compõem a parcela da população brasileira que descumpre as leis (Paoli, M. C., Benevides, M. V., Pinheiro, P. S., Da Matta, R., 1982; Nery, M., Adorno, S., 2013).
A experiência da lei e com a lei acontece na rede social brasileira a partir de uma organização social e institucional na qual são disseminados discursos e práticas que apregoam os valores da sociedade moderna como a cidadania, a separação do público e do privado, a justiça para todos, a igualdade, dentre outros. Porém, temos a operar a discriminação da lei, ou seja, a lei vale para aqueles pertencentes as camadas privilegiadas da população, sendo que os que pertencem as camadas desprivilegiadas em termos econômicos, ou culturais, dentre outros aspectos, não recebe o tratamento de igualdade e de direitos oferecidos nas leis jurídicas (Souza, 2017). Ainda, temos a operar a perversão da ética, pois localizamos a dissociação entre a prescrição jurídica e o discurso moderno em contraponto a práticas institucionais que não aplicam a jurisdição a maioria da população. Temos a captura das subjetividades e das instituições que passam a operar a contramãos das leis jurídicas prescritas nas normas e nos códigos jurídicos.
Dessa forma, a representação dos brasileiros como transgressores e praticantes da instrumentalização da lei, produz uma imagem distorcida sobre a sociedade nacional e a construção de uma “possível justificativa” às transgressões. Essa operação leva as pessoas a acreditarem que “se todos fazem, eu também devo fazer” ou “se alguém não praticou uma transgressão é porque não teve oportunidade”. Produz-se, assim, a perversão da ética que sustenta o projeto moderno, via a desqualificação da sua eficácia como princípio regulador da vida associativa e a desqualificação dos que adotam o princípio da lei universal como valor, que passam a ser considerados ingênuos ou idealistas.
Frente a esse cenário entendemos que a crítica direcionada ao poder e a ideologia, que auxiliam na manutenção de discursos que produzem a perversão da ética e a construção de estereótipos sobre a população nacional, podem auxiliar no desmonte desses discursos. Também, o reconhecimento da subjetividade cindida, conforme aponta Freud (1919/1977), possibilita o questionamento da organização subjetiva e pode auxiliar na mudança da relação estabelecida pelo sujeito consigo mesmo e com o outro. O contato com o novo em termos de mudança na relação com o poder e com o discurso ideológico, necessita que o sujeito tenha condições subjetivas para questionar suas certezas, podendo reconhecer e sustentar o contato com o outro, interno e externo, sem sentir-se demasiadamente ameaçado. Dessa forma, ele pode pensar sobre os estereótipos construídos pelo discurso oficial, e enxergar a possibilidade de reconhecer o novo não apenas como estranho, e sentir que é viável desestabilizar as representações elaboradas pela elite.
Referências
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Notas
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Professora e Pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia na UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina – Brasil. Doutora em Psicologia Clínica na PUC – SP – Brasil. E‑mail: meritisouza@yahoo.com.br ↑