Ordens do amor de Bert Hellinger: À serviço do sistema de justiça brasileiro
Jamile Gonçalves Serra Azul[1], Lídia Maria Ribas[2]
Defensora Pública do Estado de Mato Grosso do Sul
Pesquisadora e professora permanente do
Mestrado em Direitos Humanos da UFMS
Resumo
Bert Hellinger, desenvolveu o que hoje se conhece como Constelação Familiar. O juiz brasileiro, Sami Storch, aproveitando do conhecimento das constelações familiares, passou a aplicar os fundamentos e práticas desta abordagem nos conflitos jurídicos, o que denominou de Direito sistêmico, tendo como base as Ordens do Amor, que funcionam como leis naturais que regem todos os relacionamentos. A partir desta experiência exitosa, instituições integrantes do Sistema de Justiça, passaram a aplicar a abordagem nas suas respectivas áreas de atuação repetindo o sucesso de Sami Storch. Diante disso, busca-se analisar como as ordens do amor podem ser aplicadas no Sistema de Justiça brasileiro. Para tanto, utiliza-se de pesquisa documental e método dedutivo. Conclui-se que as ordens do amor possibilitam as partes de um conflito aprofundarem a sua visão acerca do problema e apresentam uma maior disposição para resolver o conflito e melhora as suas relações pessoais.
Resumen
Bert Hellinger, desarrolló lo que hoy se conoce como Constelaciones Familiares. El juez brasileño Sami Storch, aprovechando el conocimiento de las Constelaciones Familiares, comenzó a aplicar los principios y prácticas de este enfoque en los conflictos legales, lo que llamó Derecho Sistémico, basado en las Órdenes del Amor, que funcionan como leyes naturales que rigen todas las relaciones. A partir de esta exitosa experiencia, las instituciones que forman parte del Sistema de Justicia comenzaron a aplicar el enfoque en sus respectivos ámbitos de actuación, repitiendo el éxito de Sami Storch. A la luz de esto, buscamos analizar cómo las órdenes de amor pueden ser aplicadas en el sistema de justicia brasileño. Para ello, se utiliza la investigación documental y el método deductivo. Se concluye que las órdenes de amor permiten a las partes de un conflicto profundizar en su visión sobre el problema y presentar una mayor voluntad de resolver el conflicto y mejorar sus relaciones personales.
Introdução
O Direito sistêmico pode ser definido como a aplicação das posturas, práticas sistêmicas e das constelações familiares aos litígios jurídicos a fim de possibilitar uma visão aprofundada dos conflitos, evitando a reiteração de demandas e padrões comportamentais. Destaque-se que esta expressão nada tem a ver com o Direito sistêmico de Niklas Luhmann em que pese ambos partam do referencial da palavra sistema.
A Constelação Familiar, por sua vez, é uma abordagem desenvolvida pelo alemão Bert Hellinger que se propõe a mostrar, por intermédio de representantes, como a dinâmica familiar atua inconscientemente na vida da pessoa representada, produzindo padrões de comportamento e relações muitas vezes causadoras de grande sofrimento por várias gerações.
Esta abordagem está sendo aplicada em todo o Sistema de Justiça no Brasil, em especial, no Poder Judiciário, com fulcro no art. 4º, VII da Constituição Federal, Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça e art. 3º, § 2º e 3º do Código de Processo Civil, entre outros dispositivos legais que estimulam a resolução extrajudicial dos conflitos. Assim, por meio deste trabalho descritivo, explicativo e exploratório, por intermédio de uma pesquisa bibliográfica, documental, analisa-se qual a fundamentação jurídica para aplicação do Direito sistêmico. Para tanto, no primeiro capítulo se expõe aspectos gerais da Constelação familiar e do Direito sistêmico. Em seguida, no segundo capítulo, as Ordens do Amor, sendo que cada uma será abordada em subtópico específico, expondo possibilidades de atuação que promovam maior pacificação das partes.
1. Constelação familiar e direito sistêmico
A Constelação Familiar é uma abordagem que mostra a imagem interna inconsciente que está desordenada e incompleta que produz sofrimento (Laguno, 2019). Esta abordagem foi desenvolvida pelo alemão Anton “Suitbert” Hellinger posteriormente conhecido apenas como Bert Hellinger, nascido em 1925, em Leimen, Alemanha (Hellinger, 2020, pp.20).
Esta imagem interna inconsciente é mostrada na Constelação Familiar por intermédio de representantes, que em regra não conhecem a pessoa a ser constelada, mas em razão da ação do campo mórfico[3], se posicionam e se movimentam durante a constelação, de forma que o constelador percebe qual a dinâmica familiar oculta que vem produzindo padrões de comportamento e relações muitas vezes causadores de grande sofrimento por várias gerações no ajudado.
Direito sistêmico, por sua vez, é expressão utilizada pelo juiz Sami Storch para denominar a análise do Direito sob uma ótica baseada nas ordens superiores que regem as relações humanas, conforme demonstram as constelações familiares desenvolvida por Hellinger (Storch, 2018). Segundo Storch:
O Direito sistêmico vê as partes em conflito como membros de um mesmo sistema, ao mesmo tempo em que vê cada uma delas vinculada a outros sistemas dos quais simultaneamente façam parte (família, categoria profissional, etnia, religião etc.) e busca encontrar a solução que, considerando todo esse contexto, traga maior equilíbrio. (Storch, 2018)
Estas ordens superiores são chamadas por Bert Hellinger de Ordens do Amor. São elas: o pertencimento, a hierarquia e o equilíbrio entre o dar e o tomar. Essas ordens seriam como as leis da física, cuja existência e influência ocorrem independentemente da consciência acerca delas ou da vontade (Hellinger, 2015, pp. 41).
Neste sentido, com base nos conhecimentos destas leis, os profissionais da área jurídica, ao serem demandados para atuar em qualquer espécie de conflito, em uma atuação com fulcro no direito sistêmico, podem perceber no atendimento ou atuação processual, qual ou quais ordens estão sendo violadas e convidarem/provocarem as partes a olharem para isso, o que pode promover uma maior pacificação, independentemente da utilização das Constelações Familiares, como se mostra a seguir (Serra Azul, 2019, pp. 125).
2. Ordens do Amor
As relações humanas mais duradouras são regidas, em sua maioria, por regras de convivências que muitas vezes são estabelecidas de forma verbal ou não-verbal. Essas regras, não obstantes, são passíveis de serem alteradas e adequadas às necessidades dos envolvidos. Bert Hellinger, contudo, a partir das suas experiências e observações concluiu que existem Ordens[4], às quais denominou de Ordens do Amor, mas que posteriormente sua esposa Sophie Hellinger, com o seu consentimento, chamou de Princípios Básicos da Vida, que regem todas as relações humanas e não são passíveis de alteração, são elas: Pertencimento, Hierarquia[5] e Equilíbrio (Hellinger, 2019, pp. 25).
A partir deste conhecimento serão expostas possibilidades de aplicação prática destas Ordens no Sistema de Justiça como forma de assegurar o acesso à justiça, de uma forma mais ampla, e pacificar as relações da pessoa que procuram estas instituições.
Segundo Hellinger (2019, pp. 25), estas ordens básicas são responsáveis pelo sucesso e fracasso nas relações, pois somente o amor não é suficiente para o êxito das relações, que devem também observar as ordens. As ordens do amor são frutos de nossas necessidades básicas: vínculo, ordem e compensação.
Estas três Ordens do Amor podem ser vistas, até mesmo, na sobrevivência da humanidade até os dias atuais. Yuval Harari relata que, na origem do Homo Sapiens, nos clãs humanos da África há cerca de um milhão de anos, várias necessidades de sobrevivência em um ambiente hostil exigiram uma adaptação da então nova espécie. Tais necessidades só puderam ser satisfeitas através de um mecanismo inconsciente que gerava máxima colaboração entre os membros do clã (HARARI, 2016).
Ambrósio e Oliveira Júnior (2018, pp. 133), fazem a seguinte comparação deste fenômeno com as ordens do Amor:
Esse fenômeno gera um princípio de forte aderência ao grupo através do mecanismo do pertencimento que, aliado a uma hierarquia ditada pelo mais velho-aquele que acumulou estratégias de sobrevivência e pode compartilhá-la com os demaise por último um elemento que garante a uma necessidade inconsciente de equilíbrio nas trocas do dar e receber, propiciou aos agrupamentos humanos a prosperidade e a hegemonia da espécie no globo.
Assim, aprofunda-se em cada Ordem nos tópicos seguintes.
2.1 Ordem do Pertencimento
A primeira Ordem do Amor é o pertencimento. Segundo ela, todos os membros de um sistema familiar devem pertencer. Esta primeira Ordem foi descoberta por Bert Hellinger na prática da Constelação familiar, enquanto as demais durante os momentos de meditação (Hellinger, 2020).
Assim, geralmente, pertencem ao sistema:
1 – Filhos. Portanto, nós mesmos e nossos irmãos e irmãs. Não somente os que vivem, mas também os natimortos, e todos que foram abortados. Pertencem também à família os filhos que foram ocultados ou dados. Para a consciência coletiva todos eles fazem parte completamente e sem diferenciação.
2 – Fazem parte os nossos pais e todos seus irmãos biológicos. Também os parceiros anteriores dos pais fazem parte.
3 – Os avós.
4 ‑Além dos parentes consanguíneos e parceiros anteriores, também fazem parte de nossa família aqueles com que, através de sua morte ou destino, a família teve uma vantagem; por exemplo, através de uma herança considerável. Também fazem parte aqueles com que à custa de sua saúde e vida, a família enriqueceu.
5 – Aqueles que foram vítimas de atos violentos através de membros de nossa família tornam-se parte dela.
6 – Quando membros de nossa família são vítimas de crimes, especialmente se perdem a vida, os assassinos passam a fazer parte de nossa família (Hellinger, 2015a, p. 39).
Se um membro for excluído do grupo familiar ou a ele ser negado o direito de pertencer, haverá no grupo a necessidade de restabelecimento da completude. Desta forma, o membro excluído ou esquecido é representado por outra pessoa, normalmente na próxima geração ou da seguinte, que, de maneira geral, inconscientemente, também passa a se sentir excluída e se comporta como a pessoa representada, assumindo os sentimentos, sintomas e até mesmo o destino deste, o que se denomina de emaranhamento.
A pessoa que assume o destino do seu ancestral excluído não é a responsável pela exclusão, demonstrando a impessoalidade desta Ordem que responsabiliza não somente a quem caberia o restabelecimento da harmonia, mas também os seus descendentes. Durante a Constelação Familiar esse emaranhamento vem à tona e pode ser revogado quando o membro excluído é trazido de volta à família, o que pode ocorrer de várias formas que impliquem em o membro ser lembrado, honrado e ter a sua existência respeitada independentemente de julgamentos.
É muito comum isso acontecer, por exemplo, em casos de filhos que não têm contato com o pai. Esses filhos, como uma maneira amorosa de honrar o pai, passam a ter comportamentos semelhantes ao do pai excluído, mesmo sem nunca ter tido qualquer contato físico com ele. É uma forma de incluir no sistema o pai a quem foi negado o direito de pertencer. Portanto, independentemente da vontade, todos os membros de uma família, vivos ou mortos, fazem parte do sistema e influenciam as gerações futuras (Hellinger, 2012, pp. 121).
Em instituições como a Defensoria Pública é possível verificar inúmeras situações de violação a esta ordem. A começar, no atendimento dos rotineiros casos de alienação parental que são comuns de ocorrerem após a separação quando uma das partes, ou ambas, ainda se encontra demasiadamente abalada emocionalmente. Normalmente praticado pela pessoa que está no exercício da guarda fática da criança ou adolescente, como uma forma de “descontar” o sofrimento amoroso, passa a falar mal do outro genitor. Seja pela repetição de frases como “Fazer é fácil, difícil é criar”, seja criando falsas memórias com afirmativas como “Ele/a prefere o filho da ‘outra’ a você”, entre outros, que terminam gerando verdadeira aversão no filho em relação àquele pai ou mãe alienados.
Esta situação é facilmente perceptível nos atendimentos de partes que querem propor ação de alimentos, guarda ou até mesmo divórcio. Em regra, a parte que deseja ajuizar a ação ao ser questionada sobre o direito de convivência do outro genitor em relação aos filhos do casal costuma responder com perguntas como: “E se a criança não quiser ir com o pai, tenho que obrigar?” e em muitos casos é comum ainda complementarem com a seguinte afirmativa “eu estimulo ele vê o pai, mas ele que não quer”. Em ambas as frases é possível, o profissional sistêmico perceber que existem fortes indícios de que um dos genitores está sendo excluído e convidar a parte para refletir da importância de ambos os pais na vida de uma criança, que com certeza deseja ter os pais juntos, porque ele é o pai e a mãe e quando um dos dois é excluído, é como excluir uma enorme parte do seu ser.
Bert Hellinger chega a afirmar em suas obras que a criança deve ficar na guarda do progenitor que mais respeita e honra o parceiro (2020, pp. 178), porque assim a criança terá trânsito livre com o pai e com a mãe e ela precisa de ambos e tem de poder amá-los igualmente.
A partir da verificação da exclusão, a postura sistêmica do Defensor que atende a parte alienante será no sentido de convidar a mesma a olhar o sofrimento que ela está causando no seu filho ao não olhar para o pai dele e como isso tem a ver com o comportamento rebelde, hiperativo, com as notas baixas, além dos graves problemas de saúde e até mesmo suicídio (Waquim, 2015, pp.75).
O profissional pode demonstrar toda esta dinâmica oculta por meio da Constelação Familiar individual, utilizando bonecos ou âncoras, por exemplo, ou em grupo. Como já dito, Bert nunca trabalhou com bonecos e âncoras, sendo que a utilização destes elementos na Constelação familiar decorreu de um desenvolvimento transdisciplinar a partir da psicologia, como as caixas de areia[6]e as âncoras da Programação Neurolinguística[7].
Muitas vezes um exercício de visualização como pedir para a parte para fechar os olhos e imaginar o pai ou mãe do seu filho e dizer frases como “Sou grata por tudo que vivemos juntos, agora sigo em frente” e logo em seguida visualizar como o seu filho se sentiria ao ouvir estas palavras são simples exercícios que geram efeitos imediatos na pessoa, que tende a sentir mais leveza, paz.
Os profissionais do Sistema de justiça também podem aplicar o Direito Sistêmico ao atuarem na seara penal com fulcro neste Princípio básico do Direito ao Pertencimento. Uma das primeiras coisas a fazer é incluir a vítima, assim como o agressor e o sistema familiar de ambos. A inclusão da vítima, que é muito pouco vista pelo Sistema de Justiça, e sequer participa do momento de decisão da sanção do perpetrador, faz com que a instituição que a represente termine sendo tomada por um sentimento de vingança, muitas vezes, como uma forma de restabelecimento da Lei do Pertencimento. Neste sentido Hellinger (2007a, pp. 129) pontua:
Eu notei que, normalmente, a indignação não vem das vítimas, mas daqueles que se acham no direito de representar as vítimas. Eles reclamam ilicitamente para si o direito de ficar zangados com os agressores, sem ter passado pelo sofrimento. Como recebem o apoio da maioria, nem mesmo correm o risco de serem responsabilizados pelo desejo de vingança contra os agressores. Aqui existe uma curiosa semelhança entre os indignados e os agressores, exatamente aqueles que são criticados. Os primeiros consideravam-se superiores e por isso se sentiram no direito de atacar e aniquilar os outros.
Outra situação que é costumeira e que pode violar esta lei do pertencimento são os pedidos de adoção. Isto porque, é normal os pretensos adotantes julgarem os pais biológicos das crianças e adolescentes que pretendem adotar e ao alcançar êxito no intento judicial, buscam eliminar essas figuras da pessoa adotada, como se pai e mãe fossem seres fungíveis.
Segundo as Ordens do Amor, assim, os adotantes ao terem esses comportamentos acima descritos, provavelmente não terão êxito nas suas relações com a pessoa adotada que, por serem leais aos seus pais biológicos, tentarão se vingar dos pais adotivos com comportamentos inadequados, agressividade, entre outros.
Bert Hellinger no livro Olhando para a alma das crianças, afirma:
Os pais adotivos devem se ver como substitutos dos pais biológicos. Devem respeitá-los. Somente ao respeitar os pais, podem respeitar a criança. Devem amar os pais da forma que são. Então podem amar também a criança. Se eles se colocarem acima dos pais biológicos, a criança se vinga, dizendo: “Vocês não são melhores que meus pais” (Hellinger, 2015b, pp. 46).
Assim, ao atender uma situação de adoção, é interessante aos servidores das instituições do Sistema de Justiça provocarem nos pretendentes reflexões no sentido da importância dos pais biológicos para àquela pessoa a ser adotada, pois sem eles, ela não existiria, ou seja, os pretendentes devem ter um olhar de gratidão para aqueles, não de julgamento.
O professor e médico Renato Bertate afirma em seu livro “Adoção: como alcançar o sucesso” que o ajudante somente conseguirá ajudar a criança adotada e os pais adotivos se olhar e se dedicar aos pais biológicos sem julgamentos, quando então surgirão caminhos e soluções (Bertate, 2016, p. 10). Ainda neste livro, o professor exemplifica atendimentos que fez de paciente com dores crônicas que ao ser olhado de maneira sistêmica, se verificou que estas dores tinham a ver com a dor de ter doado um filho anteriormente. Também, exemplificou um atendimento de uma paciente que a mãe estava com câncer em processo de metástase e ao ser constelada se verificou que ela poderia não ser filha biológica. Esta paciente, ao conversar com a sua mãe, conversou amorosamente sobre esta possibilidade, o que foi confirmado. Poucos meses depois os exames atestaram que a mãe já não portava o câncer (Bertate, 2016, p. 30).
Também neste sentido Storch e Migliari expõem:
A dignidade de um filho adotivo está no fato de ele ter uma história própria. Não lhe aumenta a dignidade qualquer julgamento no sentido de considerar que os pais biológicos desse filho não são bons. Não o fortalece julgar que sua história de origem está errada, que não deveria ter sido como foi e que melhor seria passar uma borracha nessa origem, colocando em seu lugar uma outra, ainda que fictícia. Esse filho adotivo não é pior que os filhos biológicos do casal adotante por ser diferente (Storch & Migliari, 2020, pp. 229).
Em um mesmo atendimento é comum se perceber violação não somente de uma lei sistêmica, mas de duas ou até mesmo de todas, como é comum acontecer nas ações de divórcio, em que um dos cônjuges não aceitava a família anterior do marido e para compensar agradava demais àquele, com presentes, assumindo todos os afazeres domésticos, entre outros.
Nesta situação há uma clara violação a Ordem do pertencimento, pois quando um cônjuge não aceita a família do outro, ele está excluindo uma parte do seu companheiro, da sua família, história, o que com certeza ocasiona um peso maior no relacionamento. Também ao excluir os filhos e a ex-esposa do atual marido, a esposa viola a Ordem da precedência, que será abordada posteriormente, mas que em linhas gerais dispõe que os relacionamentos anteriores devem ser respeitados porque o atual se beneficiou da não continuidade daquele, assim, para uma boa relação, é importante reconhecer a importância dos relacionamentos anteriores dos cônjuges, pois sem estes, o cônjuge seria uma pessoa diferente e talvez o relacionamento atual sequer se concretizaria.
Por fim, também se observa na situação narrada violação a Ordem do equilíbrio, já que quando um cônjuge dá muito para o outro, aquele que recebe se sente pesado, incapaz de devolver tudo, assim, é natural que quem recebeu muito, rompa o relacionamento, causando revolta naquele que tanto se dedicou. Esta é uma situação contumaz, pois quem apenas dá é pai e mãe e em um relacionamento de casal, deve haver um equilíbrio entre o dar e receber e quando isso não é observado, o fim do relacionamento costuma ser questão de tempo. A partir deste pequeno exemplo se depreende o quão é imprescindível o conhecimento e aprofundamento em todas as Ordens do Amor.
2.2 Ordem da Hierarquia
A segunda Ordem do Amor é a hierarquia. Bert Hellinger ensina que, segundo esta ordem, os membros familiares que vieram antes têm precedência em relação àqueles que vieram depois. Os pais têm precedência sobre os filhos e o irmão mais velho tem precedência sobre o mais novo. A hierarquia é desrespeitada, por exemplo, quando os sucessores interferem em assuntos dos antecessores, e julgam saber mais do que aqueles que vieram antes (Hellinger, 2020).
Antes de aprofundar no tema é salutar diferenciar as expressões hierarquia, precedência e prioridade na obra de Bert Hellinger. A expressão Hierarquia está relacionada mais com exercício de uma função. Enquanto precedência tem a ver com anterioridade, com o tempo, quem veio antes, por isto esta segunda ordem é também chamada de Ordem da precedência ou simplesmente “ordem”. Prioridade, por sua vez, diz respeito à preferência. A fim de facilitar o entendimento exemplifica-se: em uma família reconstituída, em que ambos os cônjuges tiveram filhos da relação anterior, a primeira família tem precedência em relação a nova, mas esta tem prioridade em relação àquela, ou seja, os cônjuges devem em suas decisões priorizar a sua família atual em detrimento da anterior, mas sempre respeitando a anterioridade daquela.
Para Bert Hellinger a hierarquia familiar deve atender a três funções: tempo (precedência), peso (prioridade) e função (hierarquia) e afirma:
O relacionamento entre marido e mulher existe antes de se tornarem pais; há adultos sem filhos, mas não existem filhos sem pai biológicos. O amor vence quando os pais cuidam bem dos filhos quando eles são jovens, mas a recíproca mão é verdadeira. Assim, o relacionamento entre marido e mulher assume prioridade na família (Hellinger, 2008, pp.74).
O critério fundamental para este Princípio é o tempo da pessoa naquele sistema, por isso, em uma relação de casal, ambos estão no mesmo patamar, pois o relacionamento começou ao mesmo tempo para ambos. Quando o casal tem filhos, o primogênito tem precedência em relação ao segundo, pois tem mais experiência naquele sistema familiar. Isto, contudo, não significa que o primogênito tenha autoridade sobre os seus irmãos mais novos, mas que na ordem de precedência ele vem em primeiro lugar e isso deve ser considerado em determinadas situações de conflito, por exemplo.
Entretanto, na família todos têm o seu lugar não sendo necessário disputar esse lugar, seja se colocando como maior ou tentando excluir os outros, pois o fracasso, por meio de relações conflituosas ou doenças, será iminente. Destaque-se, contudo, que entre sistemas o mais novo tem precedência em relação ao mais antigo, por exemplo, a família atual tem precedência sobre a família de origem, pois isso decorre de o próprio fluir da vida (Hellinger, 2019, pp.28).
Esta precedência do sistema atual sobre o sistema anterior, contudo, não significa a exclusão deste. Assim, em uma família quando um ou ambos os parceiros já tiverem sido casados ou tido um relacionamento significativo anterior, é importante que o parceiro anterior não seja depreciado, excluído ou rejeitado, pois o novo casal se beneficiou do não êxito da relação anterior, além dos envolvidos serem pessoas diferentes em razão desta experiência anterior. Quando não ocorre esse reconhecimento e sentimento de gratidão, àquele parceiro excluído será representado por um filho da nova família (Hellinger, 2019).
No que tange às famílias reconstituídas em que os pais têm filhos de casamentos anteriores e filhos comuns, Hellinger (2019, pp. 29–30) afirma:
Os filhos do homem ou da mulher, frutos de relacionamentos anteriores, já estavam nesse sistema antes de o novo parceiro chegar. Portanto, eles têm precedência em relação ao novo parceiro e aos filhos da nova relação. Isso precisa ser reconhecido pelos filhos do novo relacionamento. O novo parceiro, tampouco, pode pedir que tenha preferência em relação aos filhos do relacionamento anterior. Isso gera conflitos.
Não obstante os filhos da relação anterior tenham precedência em relação ao novo parceiro e aos filhos do novo relacionamento, a nova família tem precedência sobre a família de origem, como já dito anteriormente, por se tratar de sistemas diferentes. Assim, se um homem diz à mulher, ou vice-versa, “Meus pais vêm em primeiro lugar”, a relação fica comprometida. Da mesma forma que se uma pessoa comprometida engravida outra pessoa em uma relação extraconjugal, forma-se um novo sistema que terá precedência sobre o relacionamento anterior.
A partir de uma postura sistêmica, os servidores das Defensorias Públicas que tenham conhecimento destas Ordens, podem fazer pequenas intervenções convidando as partes envolvidas a olharem para estas situações. No atendimento na área de família é rotineiro relatos de que o ex-companheiro, após constituir uma nova família, abandonou, afetiva e materialmente, os filhos do relacionamento anterior.
Em um atendimento assim, é possível mostrar para este pai, por meio de representações com bonecos, âncoras, como esses filhos se sentem em relação a ele, bem como, os filhos no novo relacionamento estarão comprometidos, em nível de inconsciente, em incluírem os seus irmãos, além da grande possibilidade de fracasso que este novo relacionamento tem por violar tantas regras que o faz mais pesado do que precisaria.
Há de se ter cautela, não obstante, com esta observação, pois não se defende a justiciamento privado, mas como já dito anteriormente, que esta seja mais ouvida e considerada na responsabilização dos envolvidos em seu conflito, pois há uma clara violação da hierarquia, já que o problema lhe atingiu antes que ao Estado, mesmo assim muitas vezes sequer é ouvida. A Justiça Restaurativa propõe alterações neste sentido e talvez seja a solução para o caótico sistema penal brasileiro que cada vez aumenta a sua população carcerária sem ter qualquer redução nos níveis de violência, deixando evidente a ineficácia das medidas até então aplicadas.[8]
2.3 Ordem do Equilíbrio
Por último, tem-se a ordem do equilíbrio. Esta ordem prevê que as relações são regidas pelo dar e tomar. As relações humanas são relações de trocas recíprocas, tanto para o bem, quanto para o mal. Quando se recebe algo, sente-se necessidade de compensar e, uma vez que se entende ter retribuído aquilo que se recebeu, a pessoa se sente aliviada. O equilíbrio pode advir de trocas positivas, quando alguém faz um bem para o outro e igualmente recebe deste algo bom, mas também pode ocorrer com trocas negativas, quando se faz mal a alguém. Esse equilíbrio, no entanto, só pode ser buscado em relações entre pessoas de mesmo nível hierárquico (Hellinger, 2020).
A relação entre pais e filhos será sempre desequilibrada. Os filhos jamais poderão retribuir aos pais o que deles tomaram e o que de mais valioso lhes foi dado: a vida. Nessas relações, o amor deve seguir adiante, como o fluxo de um rio, no sentido da vida. Assim, os filhos passam o que tomaram para a próxima geração.
Quando se trata de relações entre casais, é necessário que a retribuição positiva seja sempre um pouco maior do que aquela que se tomou. Já a retribuição negativa, deve ser um pouco menor do que o mal que outro lhe fez e sempre com amor. Dessa forma, o equilíbrio entre um casal em harmonia não é estático. A relação deve ocorrer de modo que as trocas sejam valiosas e maiores.
Nos atendimentos da área de família na Defensoria Pública acontecem muitos casos de divórcio em razão da violação desta lei sistêmica. Mulheres que muitas vezes abandonaram sua vida profissional e se dedicarem ao relacionamento, após, são abandonadas pelos companheiros e não entendem o que fizeram de errado. Em uma visão sistêmica, observa-se que ao dar demais, a mulher se colocou como mãe do companheiro e, este, ao reconhecer como impossível a retribuição na mesma medida, rompe o relacionamento.
É salutar destacar, entretanto, que Hellinger em sua obra em nenhum momento afirma que o ser humano é naturalmente ruim. Pelo contrário, no livro “Conflito e Paz” (Hellinger, 2007b, p. 67) o autor afirma que o que se julga como pessoas más são indivíduos com valores distintos de quem julga.
Esta lei é o alicerce do Direito penal fundamentado na característica de retributividade da pena. Contudo, nem todo crime, na visão sistêmica, necessita necessariamente de uma pena, sendo que somente os envolvidos no conflito são realmente capazes de dizer qual medida seria mais plausível no caso em concreto para o restabelecimento do equilíbrio. Ainda, como já dito, a retribuição deve ser sempre um pouco menor do que o mal causado, para não virar vingança e ser possível retomar uma troca positiva.
O próprio Hellinger (2001, pp. 42) aponta a importância de o agressor ser responsabilizado pelos seus atos:
Quando alguém tem uma culpa pessoal, ela é uma fonte de força, desde que seja reconhecida. No momento em que alguém reconhece a própria culpa, deixa de sentir-se culpado. Esse sentimento se infiltra quando a culpa é reprimida ou não é reconhecida. Quem reconhece a própria culpa se fortalece, pois ela se manifesta como força. Quem nega sua culpa e se esquiva de suas consequências tem sentimento de culpa e é fraco. A culpa que alguém possui capacita‑o a fazer coisas boas. Ele não teria tido força para fazê-las se antes não tivesse reconhecido essa culpa.
Não obstante, considerando as péssimas condições do sistema carcerário no Brasil, que já foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal como “estado de coisas inconstitucional” (vide ADPF 347), tem-se que em boa parte das vezes os custodiados ao saírem das prisões sentem-se com crédito negativo em face do Estado, já que muitas vezes praticaram crimes sem violência ou grave ameaça, como é o caso do tráfico, mas sofrem tantas violações de direitos e violência enquanto estão sob tutela do Estado, que se sentem com crédito, o que pode ser um dos fatores ao alto índice de reincidência do país (Pastoral Carcerária, 2018).[9]
Considerações finais
A Constelação Familiar é abordagem desenvolvida por Bert Hellinger e ao mostrar com clareza as causas mais profundas dos conflitos, vem revelar a grande utilidade da aplicação dela no sistema de justiça pois é tão-somente a partir das causas que se resolve realmente um problema. Neste sentido o juiz Sami Storch desenvolveu o Direito sistêmico para denominar a análise do Direito sob uma ótica baseada nas ordens superiores que regem as relações humanas, conforme demonstram as constelações familiares desenvolvida por Hellinger.
O Direito Sistêmico possui um amplo respaldo legal nas normativas vigentes, a exemplo do art. 4º, VII da Constituição Federal, Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça e art. 3º, § 2º e 3º do Código de Processo Civil, mas ainda é tema desconhecido por muitos, em que pese seja usado até mesmo como fonte de jurisprudência. Há, ainda, uma confusão das possibilidades de aplicação prática do Direito sistêmico, pois além das Constelações familiares esta abordagem possibilita a utilização de simples frases, posturas e intervenções com bases nas Ordens do Amor.
Ordens do Amor é expressão cunhada por Bert Hellinger, mas que posteriormente sua esposa Sophie Hellinger, com o seu consentimento, chamou de Princípios Básicos da Vida, para tratar “leis” que vigoram nas relações humanas e não são passíveis de alteração, são elas: Pertencimento, Hierarquia e Equilíbrio. Estas Ordnungens possibilitam que os profissionais do Sistema de Justiça tenham um olhar mais aprofundado dos conflitos e encontrem as causas de fundo destes. A partir disso, as partes envolvidas, passam a ter uma nova forma de lidar com os seus problemas e se empoderam com melhores alternativas para resolvê-los sendo, portanto, uma nova forma de acesso à justiça.
Referências
Ambrósio, J. M. C; Oliveira Júnior, D. (2018). Justiça Sistêmica: Um novo olhar para resolução de conflitos. Disponível em: https://amz.onl/fJRRqOJ. Acesso em: 11 jun. 2020.
Bertate, R. (2016) Adoção: como alcançar o sucesso. São Paulo: Conexão Sistêmica.
Brasil. Constituição Federal da República Federativa Brasileira de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. [consultado em 31 -10-2020].
Brasil. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. [consultado em: 16 -03- 2020].
CNJ. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 125 de 29/11/2010. Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/atos-normativos?documento=156. [consultado em: 15 -09- 2020]
Harari, Y. N. (2016). Sapiens: uma breve história da humanidade. 18.ed. (trad. Janaína Macoantonio). Porto Alegre: L&PM.
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Storch, Sami. Direito sistêmico - uma luz no campo dos meios adequados de solução de conflitos. Publicado em: 18 de junho de 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jun-20/sami-storch-direito-sistemico-euma-luz-solucao-conflitos. Acesso em: 27 jun. 2019.
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Waquim, B. B. (2015). Alienação parental induzida: aprofundado o estudo da alienação parental. Rio de Janeiro: Lumen Juris.
Notas
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Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Anhanguera. Especialista em Direito Sistêmico pela Hellinger Schule. Mestranda em Direitos Humanos da UFMS. Correio eletrônico: jamile.serra.azul@gmail.com ↑
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Doutora e Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP. Membro da ABDT, da ADPMS e do CEDIS/UNL. Correio eletrônico: limaribas@uol.com.br ↑
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Tal fenômeno é explicado pelo biólogo e Ph. D Rupert Sheldrake por meio da teoria do campo morfogenético. O referido biólogo inicia a sua análise do tema no livro “A nova ciência da vida” a partir de críticas à biologia molecular que não consegue explicar, por exemplo, o que fazem seres humanos serem tão diferentes de Chimpanzés, em que pese tenham uma semelhança molecular de acima de 90% (Sheldrake, 2004, p. 17). ↑
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Em alemão é “Ordnungen”, expressão que por vezes será adotado por este trabalho. ↑
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Esta Ordem também é chamada de precedência ↑
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A técnica da caixa de areia, em seu nome original sandplay ou brincadeira na areia em inglês, foi idealizada pela psicoterapeuta suíça Dora M. Kalff. Ela teve como base a psicologia analítica de Carl Gustav Jung e o trabalho da psiquiatra infantil Margarita Lowenfeld. Ela é utilizada principalmente para acessar a informação que nem mesmo o paciente já percebeu ou reparou de maneira consciente. ↑
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Sob o ponto de vista cientifico uma âncora é uma relação estimulo- resposta (Pavlov) ou uma relação causa e efeito. Com base na psicologia comportamental o condicionamento clássico (ou condicionamento pavloviano ou condicionamento respondente) é um processo que descreve a gênese e a modificação de alguns comportamentos com base nos efeitos do binômio estímulo-resposta sobre o sistema nervoso central dos seres vivos. O termo condicionamento clássico encontra-se historicamente vinculado à “psicologia da aprendizagem” ou ao “comportamentalismo” (Behaviorismo) de John B. Watson, Ivan Pavlov e Frederic Skinner. ↑
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Conferir dados no Relatório “Luta antiprisional no mundo contemporâneo: um estudo sobre experiências de redução da população carcerária em outras nações” (Pastoral Carcerária, 2018). Disponível em: https://carceraria.org.br/wp-content/uploads/2018/09/relatorio_luta_antiprisional.pdf. Acesso em: 16 out. 2020. ↑
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Olhar relatório que apresenta mais 40% de reincidência no sistema prisional e aproximadamente 20% de reentrada no sistema socioeducativo. ↑