Retirar crianças e adolescentes da família: problematizando o acaso e o imprevisível na prática profissional Descargar este archivo (6 - Retirar crianças e adolescentes da família.pdf)

Retirar a niños y adolescentes de la familia: problematizando el acaso y lo imprevisto en la práctica profesional

Ana Lúcia Cintra1, Mériti de Souza2

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Resumo

 

O pro­ces­so de deci­são para reti­ra­da de cria­nças e ado­les­cen­tes de famí­lias ou ser­viços de acolhi­men­to é com­ple­xo. Uti­li­zan­do-se a psi­ca­ná­li­se de Freud e sua con­ce­pção de um eu cin­di­do, ins­tá­vel e atra­ves­sa­do por pro­ces­sos de iden­ti­fi­cação, bem como a filo­so­fia de Derri­da, foi rea­li­za­da pes­qui­sa sobre o tema. O estu­do incluiu obser­vações de cam­po e entre­vis­tas com pro­fis­sio­nais do Sis­te­ma de Garan­tia de Direi­tos (SGD) da Gran­de Flo­ria­nó­po­lis-SC, fazen­do uso de ate­nção flu­tuan­te e trans­fe­rên­cia como ins­tru­men­tos de inves­ti­gação e aná­li­se. No pre­sen­te arti­go recor­ta­mos a pers­pec­ti­va do aca­so e do impre­vi­sí­vel como con­dições que inte­gram tais pro­ces­sos de deci­são, pro­ble­ma­ti­zan­do lógi­cas linea­res de cau­sa­li­da­de e suas relações com o sofri­men­to daque­les impli­ca­dos nos pro­ces­sos de deci­são. Enten­de­mos que essa pers­pec­ti­va pos­si­bi­li­ta ir além da lógi­ca for­mal e da racio­na­li­da­de moder­na do cálcu­lo, res­sig­ni­fi­can­do adver­si­da­des, ope­ran­do com uma escu­ta sen­sí­vel ao outro como acon­te­ci­men­to sin­gu­lar.

Pala­vras-cha­ve: aca­so; impre­vi­sí­vel; cria­nças e ado­les­cen­tes; psi­ca­ná­li­se; prá­ti­ca pro­fis­sio­nal.

Resumen

El pro­ce­so de deci­sión para reti­rar niños y ado­les­cen­tes de sus fami­lias o de ser­vi­cios de aco­gi­mien­to es com­ple­jo. Uti­li­zan­do el psi­co­aná­li­sis de Freud y su con­cep­ción de un Yo divi­di­do, ines­ta­ble y atra­ve­sa­do por pro­ce­sos de iden­ti­fi­ca­ción y, tam­bién, con la filo­so­fía de Derri­da fue posi­ble rea­li­zar la inves­ti­ga­ción sobre el tema. El estu­dio inclu­ye obser­va­cio­nes de cam­po y entre­vis­tas con los pro­fe­sio­na­les del Sis­te­ma de Garan­tía de los Dere­chos (SGD) de la Gran Flo­ria­nó­po­lis-SC, hacien­do uso de la aten­ción fluc­tuan­te y de la trans­fe­ren­cia como ins­tru­men­tos de inves­ti­ga­ción y aná­li­sis. En el pre­sen­te artícu­lo recor­ta­mos la pers­pec­ti­va del aca­so y de lo impre­vis­to como con­di­cio­nes que inte­gran tales pro­ce­sos de deci­sión, pro­ble­ma­ti­zan­do lógi­cas linea­les de cau­sa­li­dad y sus rela­cio­nes con el sufri­mien­to de aque­llas per­so­nas invo­lu­cra­das en los pro­ce­sos de deci­sión. Enten­de­mos que esa pers­pec­ti­va posi­bi­li­ta ir más allá de la lógi­ca for­mal y de la racio­na­li­dad moder­na del cálcu­lo, dan­do un nue­vo sig­ni­fi­ca­do a las adver­si­da­des y escu­chan­do al otro con sen­si­bi­li­dad como un acon­te­ci­mien­to sin­gu­lar.

Pala­bras cla­ve: aca­so, impre­vis­to, niños y ado­les­cen­tes, psi­co­aná­li­sis, prác­ti­ca pro­fe­sio­nal.

Introdução

O fato de cria­nças não serem cria­das por sua famí­lia de ori­gem não é exclu­si­vi­da­de dos tem­pos atuais. Por razões que acom­panham espe­ci­fi­ci­da­des de cada cul­tu­ra e momen­to his­tó­ri­co – o que inclui as varia­das con­ce­pções sobre famí­lia, esco­la e infân­cia-ado­les­cên­cia – os filhos gera­dos podiam ficar aos cui­da­dos de ter­cei­ros na pró­pria comu­ni­da­de ou em ins­ti­tuições cuja fina­li­da­de podia estar rela­cio­na­da tan­to à ofer­ta de uma edu­cação for­mal con­si­de­ra­da de qua­li­da­de como ao acolhi­men­to em situações de aban­dono. O Bra­sil não foge a esse cená­rio.

A ins­ti­tu­cio­na­li­zação de cria­nças sem­pre este­ve pre­sen­te na his­tó­ria bra­si­lei­ra, mas a par­tir do sécu­lo XX é uti­li­za­da pre­pon­de­ran­te­men­te jun­to à popu­lação des­fa­vo­re­ci­da da socie­da­de e con­so­li­da­da, até nos­sos dias, como dis­po­si­ti­vo reco­rren­te nos pro­gra­mas sociais de ate­nção à infân­cia-ado­les­cên­cia (Riz­zi­ni & Pilot­ti, 2011; Riz­zin & Riz­zi­ni, 2004). A Lei Fede­ral n.º 8.069/1990 – Esta­tu­to da Cria­nça e do Ado­les­cen­te-ECA (Bra­sil, 1990) – con­fi­gu­ra um mar­co his­tó­ri­co nes­sa área ao pre­co­ni­zar a con­dição de cria­nças e ado­les­cen­tes como sujei­tos de direi­tos. Após sua exis­tên­cia, o anti­go orfa­na­to foi subs­ti­tuí­do pelos deno­mi­na­dos Ser­viços de Acolhi­men­to (Sil­va & Cabral, 2009). Tal ini­cia­ti­va visa a um dis­tan­cia­men­to entre o pas­sa­do pejo­ra­ti­vo ao qual estão asso­cia­das tais ins­ti­tuições e o pre­sen­te, quan­do entram em pro­ces­so de muda­nças se afir­man­do como moda­li­da­des de cui­da­do mais sin­gu­la­ri­za­das, com núme­ro redu­zi­do de cria­nças-ado­les­cen­tes por ins­ti­tuição, ate­nção aos víncu­los afe­ti­vos, além do cará­ter excep­cio­nal e pro­vi­só­rio que deve carac­te­ri­zar a medi­da de abri­ga­men­to.

Os aspec­tos envol­vi­dos nos movi­men­tos para abri­gar e des­abri­gar cria­nças e ado­les­cen­tes são de gran­de com­ple­xi­da­de e ficam sob a res­pon­sa­bi­li­da­de de vários ope­ra­do­res do Sis­te­ma de Garan­tia de Direi­tos da Cria­nça e do Ado­les­cen­te. Ain­da, tam­bém o cida­dão comum, esco­las, pro­je­tos sociais – den­tre outros – podem estar pre­sen­tes de manei­ra indi­re­ta nes­se pro­ces­so, quan­do rea­li­zam denún­cias sobre vio­lação de direi­to nas enti­da­des de defe­sa.

Dian­te do expos­to, ques­tio­na-se a relação que se esta­be­le­ce entre as neces­sá­rias con­quis­tas jurí­di­cas obti­das a par­tir do ECA e seus des­do­bra­men­tos nas prá­ti­cas coti­dia­nas de ser­viços que inte­gram o Sis­te­ma de Garan­tia de Direi­tos no Bra­sil. Levan­ta-se a hipó­te­se de que nos pro­ces­sos de deci­são para reti­rar cria­nças-ado­les­cen­tes de suas famí­lias ou de ser­viços de acolhi­men­to, às leis nor­tea­do­ras se somam afe­cções que envol­vem tan­to esses sujei­tos como os ope­ra­do­res do SGD neles pre­sen­tes de manei­ra mais dire­ta. Em outras pala­vras, enten­de-se que ao uni­ver­sal da lei nor­tea­do­ra se soma o sin­gu­lar do sujei­to que deci­de; ao sujei­to cog­nos­cen­te se soma o pathos que o atra­ves­sa; ao impes­soal da razão se soma a afe­cção pre­sen­te na relação com o outro; ao efei­to do cálcu­lo soma-se o impre­vi­sí­vel do aca­so. Enten­de­mos afe­cção como o reme­ti­do à afe­tação, a con­dição do sujei­to de afe­tar e de ser afe­ta­do pelo outro e pelo entorno.

Em Força de lei, Derri­da (2010) dis­co­rre sobre as pos­si­bi­li­da­des da jus­tiça no âmbi­to do Direi­to e nes­te per­cur­so traz à tona a pers­pec­ti­va das deci­sões e, em espe­cial de uma deci­são jus­ta:

O ins­tan­te da deci­são é uma lou­cu­ra, diz Kier­ke­gaard. Isso é par­ti­cu­lar­men­te ver­da­dei­ro com res­pei­to ao ins­tan­te da deci­são jus­ta, que deve tam­bém ras­gar o tem­po e desa­fiar as dia­lé­ti­cas. É uma lou­cu­ra. Uma lou­cu­ra, pois tal deci­são é, ao mes­mo tem­po, super­ati­va e sofri­da, con­ser­van­do algo de pas­si­vo ou de incons­cien­te, como se aque­le que deci­de só tives­se a liber­da­de de se dei­xar afe­tar por sua pró­pria deci­são e como se ela lhe vies­se do outro. (Derri­da, 2010, p. 52).

A afir­mação do autor apon­ta a com­ple­xi­da­de em que se inse­re toda e qual­quer expe­riên­cia de deci­são e, de manei­ra espe­cial, situações de deci­são no âmbi­to da jus­tiça, uni­ver­so em que se encon­tram anco­ra­das as deci­sões para reti­rar cria­nças e ado­les­cen­tes da famí­lia, bem como enca­minhá-los a ins­ti­tuições e defi­nir sua per­ma­nên­cia ou des­li­ga­men­to em con­dições diver­sas. Ain­da, traz à cena o outro que se impõe nes­te pro­ces­so, levan­do à impor­tân­cia de se pro­ble­ma­ti­zar con­ce­pções como expe­riên­cia, auto­ri­da­de, afe­cção, tem­po­ra­li­da­de, razão, ati­vi­da­de, pas­si­vi­da­de, ver­da­de, den­tre outras, no intui­to de ir além do caminho fácil em que repou­sa um cum­pri­men­to da lei des­pro­vi­do de ques­tio­na­men­to. Des­ta­ca­mos que ao reco­rrer à afir­mação de que o ins­tan­te da deci­são con­sis­te em “lou­cu­ra”, Derri­da pro­ble­ma­ti­za a pers­pec­ti­va de idea­li­zação da razão e da cre­nça na ple­na auto­no­mia daque­le que deci­de exclu­si­va­men­te nela anco­ra­do.

Enten­de­mos que as situações de deci­são con­fi­gu­ram expe­riên­cias úni­cas para aque­les nela impli­ca­dos e que, uma vez toma­das como expe­riên­cias, estão – neces­sa­ria­men­te – cal­ca­das em afe­cções, as quais, por sua vez, se inse­rem no uni­ver­so da con­tin­gên­cia. Des­ta­ca­mos a arti­cu­lação entre expe­riên­cia e afe­cção, tal como pro­pos­to por Derri­da ao afir­mar que “A auto-afe­cção é a con­dição de uma expe­riên­cia geral. Esta pos­si­bi­li­da­de – outro nome para ‘vida’ – é uma estru­tu­ra geral arti­cu­la­da pela his­tó­ria da vida e oca­sio­nan­do ope­rações com­ple­xas e hie­rar­qui­za­das” (Derri­da, 2011, p. 202).

O pre­sen­te arti­go con­fi­gu­ra um recor­te de pes­qui­sa des­en­vol­vi­da jun­to ao Sis­te­ma de Garan­tia de Direi­tos da Gran­de Flo­ria­nó­po­lis – SC – Bra­sil4. Foram rea­li­za­das obser­vações de cam­po nos seto­res des­se sis­te­ma: Con­selho Tute­lar, Ser­viço de Pro­teção e Aten­di­men­to Espe­cia­li­za­do a Famí­lias e Indi­ví­duos (PAEFI), Ser­viço de Acolhi­men­to Ins­ti­tu­cio­nal, Pro­mo­to­ria da Infân­cia e Juven­tu­de. Ain­da, foram rea­li­za­das entre­vis­tas com pro­fis­sio­nais que atuam no Sis­te­ma: Conselheiro(a) Tute­lar, Psicólogo(a), Assis­ten­te Social, Promotor(a), Juiz(a). Por con­si­de­rar a com­ple­xi­da­de da reali­da­de e da cons­ti­tuição sub­je­ti­va, os dados pro­ve­nien­tes do cam­po foram sis­te­ma­ti­za­dos e ana­li­sa­dos con­for­me os pres­su­pos­tos da livre asso­ciação, trans­fe­rên­cia, aca­so, sin­gu­lar, refe­ren­cia­dos na psi­ca­ná­li­se de Freud, e nos con­cei­tos de lei, jus­tiça, afe­cção, segun­do a pro­pos­ta da filo­so­fia de Derri­da

Na pes­qui­sa rea­li­za­da, cada entre­vis­ta­do rela­tou ao menos um caso para reti­ra­da de cria­nça ou ado­les­cen­te de sua famí­lia ou ser­viço de acolhi­men­to. Res­sal­ta­mos que uma das situações com reper­cus­são na mídia local foi lem­bra­da por par­ti­ci­pan­tes do tra­balho de cam­po, não raro com for­te car­ga afe­ti­va. No viés da ate­nção flu­tuan­te cap­tou-se a insis­tên­cia de tal situação se fazer pre­sen­te no todo da pes­qui­sa, o que nos levou a con­si­de­rá-la na con­dição de “caso exem­plar” para ilus­trar o pre­sen­te arti­go e para pro­ble­ma­ti­zar o aspec­to do aca­so e do impre­vi­sí­vel. Em outras pala­vras, o pre­sen­te arti­go con­fi­gu­ra um recor­te da pes­qui­sa mais ampla e cons­ti­tui um caso no qual ana­li­sa­mos a relação daque­les que atuam no SGD da Gran­de Flo­ria­nó­po­lis – SC – Bra­sil, com o pro­ces­so de deci­são atra­ves­sa­do pelo aca­so e pelo impre­vi­sí­vel. O mate­rial de aná­li­se pro­vém de entre­vis­tas com esses pro­fis­sio­nais; de obser­vações de cam­po em ins­ti­tuições que com­põem a SGD; e de mate­rial divul­ga­do na mídia.

Para situar o lei­tor sobre a refe­ri­da situação que con­fi­gu­ra o caso apre­sen­ta­do e ana­li­sa­do no pre­sen­te arti­go, toma­mos como pon­to de par­ti­da a trans­crição de maté­ria publi­ca­da em jor­nal local e na dis­cus­são que segue acres­cen­ta­mos frag­men­tos do cam­po de pes­qui­sa que con­tri­buem para pen­sar­mos sobre este caso mar­ca­do pela pre­se­nça insis­ten­te em várias falas.

Caso, Descaso e Acaso

Em setem­bro de 2011, sob o títu­lo de que uma cria­nça havia sido mor­ta em um abri­go da Gran­de Flo­ria­nó­po­lis, o jor­nal Diá­rio Cata­ri­nen­se publi­ca a maté­ria:

Uma cria­nça morreu quei­ma­da após um aci­den­te em um abri­go no bai­rro Bela Vis­ta I, em São José, na Gran­de Flo­ria­nó­po­lis. As infor­mações são dos Bom­bei­ros do muni­cí­pio. O aci­den­te oco­rreu por vol­ta das 21h. A cria­nça esta­va sozinha em um dos quar­tos. No abri­go, esta­vam outras seis cria­nças e dois adul­tos – moni­to­res do abri­go. De acor­do com os Bom­bei­ros, os moni­to­res ten­ta­ram tirar a cria­nça por uma gra­de, mas não con­se­gui­ram por­que o calor era mui­to for­te. Outras cria­nças che­ga­ram a se into­xi­ca­rem com a fumaça e foram enca­minha­das para o hos­pi­tal. Os Bom­bei­ros espe­ram a con­clu­são dos tra­balhos do Ins­ti­tu­to Geral de Perí­cias (IGP) para iden­ti­fi­ca­rem o que oca­sio­nou o incên­dio.5

Con­si­de­ran­do infor­mações da mídia e o mate­rial pro­ve­nien­te do cam­po de pes­qui­sa, foi pos­sí­vel deli­near a com­ple­xa situação que envol­veu a avó res­pon­sá­vel por três cria­nças, a fal­ta de aten­di­men­to que ofe­re­ces­se pos­si­bi­li­da­des para evi­tar o acolhi­men­to ins­ti­tu­cio­nal, e um acolhi­men­to deter­mi­na­do judi­cial­men­te cujo des­fe­cho foi impac­tan­te para os entre­vis­ta­dos e comu­ni­da­de em geral:

Há dois, três anos atrás um abri­go […] pegou fogo e uma cria­nça morreu”. (Entrevistad@, sobre o epi­só­dio de 2011)6;

“[…] não tinha o apoio ali de um pro­gra­ma que real­men­te pudes­se dar o apoio neces­sá­rio pra aque­la vó” (Entrevistad@, sobre o epi­só­dio de 2011);

“Tem aque­le [outro caso] que o pai ateou fogo no pró­prio cor­po numa casa de madei­ra, depois veio a polí­cia e hou­ve tro­ca de tiros”. (Extraí­da de obser­vação de cam­po, alu­são a situações simi­la­res a de 2011);

“E tem o caso que já fugiu 13 vezes [do acolhi­men­to]” (Extraí­da de obser­vação de cam­po, sobre cria­nça que per­ma­ne­ceu abri­ga­da após epi­só­dio de 2011);

“O acolhi­men­to [foi fei­to] dian­te de uma auto­ri­zação judi­cial” (Entrevistad@, sobre o epi­só­dio de 2011);

“Então a gen­te pro­cu­ra orien­tar e enca­minhar, se caso de tratamento[alcoolista] e […] alter­na­ti­vas com outros fami­lia­res, […] tá tra­balhan­do então a mãe, o pai né, quan­do tem. Mas é um tra­balho, é, árduo, é um tra­balho difí­cil, sur­gem dúvi­das, mui­tas dúvidas…Até que pon­to que a gen­te tem que tra­balhar essa famí­lia…” (Entrevistad@, alu­são a situações simi­la­res a de 2011).

Tam­bém afir­ma o jor­nal Diá­rio Cata­ri­nen­se que: “Denún­cias de maus tra­tos fize­ram a Jus­tiça enten­der que o melhor para os irmãos era serem enca­minha­dos para um abri­go”7. Pou­cos dias após o acolhi­men­to, hou­ve um incên­dio na ins­ti­tuição para onde haviam sido leva­das as cria­nças, sen­do que uma delas veio a fale­cer. A mes­ma nota de jor­nal afir­ma que essa cria­nça esta­ria fecha­da em seu quar­to em função do des­con­ten­ta­men­to por não poder pas­sar o dia de seu ani­ver­sá­rio jun­to com a avó; o caminhão de bom­bei­ros che­gou, mas esta­va sem água. Como com­ple­men­to,

 “Então, essa era uma cria­nça que tava [sofren­do vio­lên­cias], então foi dado esse lau­do pra que eles fos­sem acolhi­dos, e aí ele morreu quei­ma­do, um deles morreu quei­ma­do no abri­go e o outro [sofreu vio­lên­cias] no abri­go. Então a gen­te se per­gun­ta né: o que seria melhor? […] (silên­cio). Então, é mui­to difí­cil” (Entrevistad@, sobre o epi­só­dio de 2011).

A dimen­são trá­gi­ca des­sa situação inclui a pers­pec­ti­va do impre­vi­sí­vel, do aca­so, que com­põe a vida, mas ten­de a ser dei­xa­do de lado como inexis­ten­te. O impre­vi­sí­vel, nes­te caso, pode dia­lo­gar com o des­ca­so – atra­vés de pos­sí­veis falhas na rede de ate­nção ante­rior à deci­são judi­cial, nas con­dições de cui­da­do na ins­ti­tuição, bem como na con­te­nção pre­cá­ria do incên­dio. Mas tam­bém com o aca­so, na con­dição daqui­lo que, como impon­de­rá­vel, nos esca­pa. Ain­da, supo­mos que na óti­ca dos ope­ra­do­res do Sis­te­ma de Garan­tia de Direi­tos a situação de saú­de, vida e mora­dia da avó res­pon­sá­vel pelas cria­nças defi­niam adul­tos e cria­nças como pes­soas em con­dição de ris­co e vul­ne­ra­bi­li­da­de, toman­do como refe­rên­cia a pró­pria Polí­ti­ca Nacio­nal de Assis­tên­cia Social quan­do afir­ma esta­rem incluí­dos nes­sa con­dição:

famí­lias e indi­ví­duos com per­da ou fra­gi­li­da­de de víncu­los de afe­ti­vi­da­de, per­ten­ci­men­to e socia­bi­li­da­de; ciclos de vida; iden­ti­da­des estig­ma­ti­za­das em ter­mos étni­co, cul­tu­ral e sexual; des­van­ta­gem pes­soal resul­tan­te de defi­ciên­cias; exclu­são pela pobre­za e/ou no aces­so às demais polí­ti­cas públi­cas; uso de subs­tân­cias psi­co­ati­vas; dife­ren­tes for­mas de vio­lên­cia advin­da do núcleo fami­liar, gru­pos e indi­ví­duos; inse­rção pre­cá­ria ou não inse­rção no mer­ca­do de tra­balho for­mal e infor­mal; estra­té­gias e alter­na­ti­vas dife­ren­cia­das de sobre­vi­vên­cia que podem repre­sen­tar ris­co pes­soal e social. (Bra­sil, 2005, p. 33).

Por sua vez, a uni­da­de de acolhi­men­to ins­ti­tu­cio­nal, quan­do neces­sá­ria, tem como prin­ci­pal fina­li­da­de ofe­re­cer pro­teção às pes­soas que se encon­trem nes­sas con­dições, vis­to que ope­ram a rup­tu­ra de um ciclo atra­vés do afas­ta­men­to daque­le que está em ris­co. Des­sas afir­mações que comu­men­te fun­da­men­tam a neces­si­da­de de reti­ra­da de uma cria­nça ou ado­les­cen­te de sua famí­lia, emer­ge o para­do­xo de que o “ris­co”, pre­vis­to com base nas deno­mi­na­das con­dições pre­cá­rias de vida da avó e das cria­nças, se des­lo­ca para onde ele não era sequer pre­vis­to­com base na deno­mi­na­da função pro­te­ti­va do ser­viço de acolhi­men­to. A situação rela­ta­da pro­ble­ma­ti­za as con­ce­pções de ris­co e pro­teção em suas relações com a lógi­ca linear esta­be­le­ci­da na cau­sa­li­da­de que asso­cia ris­co à con­ti­nui­da­de e ao cálcu­lo do efei­to, com a con­tra­par­ti­da da con­ce­pção do impre­vi­sí­vel, que acolhe a cau­sa­li­da­de a par­tir de outras bases, tal como o des­con­tí­nuo e o impre­vi­sí­vel.

Quais aspec­tos são con­si­de­ra­dos para esta­be­le­cer que cer­ta for­ma de estar e viver no mun­do é noci­va o sufi­cien­te para des­con­si­de­rar for­mas várias de vin­cu­lação afe­ti­va? O que sig­ni­fi­ca estar pro­te­gi­do? Como pode­mos pre­ver o que acon­te­ce­rá em deter­mi­na­da situação? Ao lançar mão ape­nas da lógi­ca linear para ten­tar res­pon­der tais per­gun­tas, esta­be­le­ce­mos relações de cau­sa e efei­to que abar­cam um olhar oni­po­ten­te sobre a reali­da­de. A fala que segue pare­ce pro­ble­ma­ti­zar o tema: “Será que se […] tives­se dei­xa­do lá [com a famí­lia] … Por mais difí­cil, por mais pro­ble­má­ti­co que fos­se, mas tal­vez esti­ves­se vivo…” (Entrevistad@, sobre o epi­só­dio de 2011).

Con­for­me a lógi­ca linear que cau­cio­na a relação entre cau­sa e efei­to e a pre­vi­são asso­cia­da ao cálcu­lo quan­do os efei­tos espe­ra­dos são atin­gi­dos, oco­rre um tipo de vali­dação das pre­vi­sões, do con­tí­nuo. Ao con­trá­rio, quan­do cau­sa e efei­to não se encon­tram no tem­po futu­ro, emer­ge a lei­tu­ra de um “erro de cálcu­lo”, des­con­ti­nui­da­de a ser expur­ga­da, corri­gi­da. Se no pri­mei­ro caso aque­le que deci­diu expe­ri­men­ta satis­fação, no segun­do é toma­do pela dor, pelo sofri­men­to de não ter evi­ta­do o erro. Nas entre­vis­tas e obser­vações de cam­po em que a situação aci­ma rela­ta­da veio à tona, foram fei­tas refe­rên­cias ao sofri­men­to dos ope­ra­do­res do Sis­te­ma de Garan­tia de Direi­tos nela envol­vi­dos de for­ma mais dire­ta.

Enten­de­mos que a cre­nça na pos­si­bi­li­da­de de con­tro­le sobre o real con­sis­te em defe­sa con­tra o des­am­pa­ro humano, des­am­pa­ro cujo fun­da­men­to está na dor da limi­tação, da fini­tu­de. Assim, ao acre­di­tar que o con­tro­le é pos­sí­vel, acre­di­ta­mos – ima­gi­na­ria­men­te – que a dor é eli­mi­na­da. Des­ta for­ma, o estar, conhe­cer e agir no mun­do pare­cem ser pas­sí­veis de con­tro­le pleno, o que leva à valo­ração hege­mô­ni­ca da con­ti­nui­da­de em detri­men­to da des­con­ti­nui­da­de, do cálcu­lo em opo­sição ao aca­so. Entre­tan­to, o des­con­tí­nuo não só exis­te como é prenhe de pos­si­bi­li­da­des impre­vi­sí­veis.

Assim, tra­ze­mos a refle­xão de Naves e Sou­za (2012) em que a pro­dução cien­tí­fi­ca é des­lo­ca­da de seu supos­to lugar de tudo saber (e con­tro­lar) para ser mis­tu­ra­da às maze­las de uma bala per­di­da e do jogo da mega-sena, apon­tan­do assim caminhos que ampliam as pos­si­bi­li­da­des de conhe­cer, uma vez que con­si­de­ram o des­con­tí­nuo e o aca­so como a reali­da­de que nos esca­pa, mas que nem por isso dei­xa de exis­tir.

A pala­vra aca­so deri­va do latim e diz res­pei­to a um con­tex­to, fato, even­to, que acon­te­ce de for­ma aci­den­tal, ou seja, oco­rre de for­ma alea­tó­ria e sem uma expli­cação apa­ren­te. Enten­de­mos que rele­var o aca­so impli­ca em reconhe­cer o alea­tó­rio, o impre­vi­sí­vel, pre­sen­tes em fenô­me­nos e situações nas quais não se pode loca­li­zar ou deter­mi­nar a relação linear e con­tí­nua entre cau­sa e efei­to, segun­do os parâ­me­tros da lógi­ca for­mal e da racio­na­li­da­de moder­na (Naves & Sou­za, 2012, p. 6).

O impon­de­rá­vel é con­dição cons­ti­tuin­te da exis­tên­cia huma­na e atra­ves­sa todas as suas relações pela sim­bo­li­zação na lin­gua­gem quan­do con­si­de­ra­mos o espaça­men­to como indis­so­ciá­vel da alte­ri­da­de, apon­tan­do ao impos­sí­vel sobre a pre­vi­si­bi­li­da­de do que acon­te­ce entre deter­mi­na­do pon­to deno­mi­na­do ini­cial, ou cau­sa, e a supos­ta che­ga­da a um outro, deno­mi­na­do final ou efei­to. No des­conhe­ci­men­to de ambos, o que temos é o espaça­men­to como força, que “não desig­na nada, abso­lu­ta­men­te nada, nenhu­ma pre­se­nça à dis­tân­cia” (Derri­da, 2001, p. 89).  O espaça­men­to é “jus­ta­men­te, a impos­si­bi­li­da­de de redu­zir a cadeia a um de seus elos ou de aí pri­vi­le­giar abso­lu­ta­men­te um – ou outro” (Derri­da, 2001, p.106).

Ao dar des­ta­que ao aca­so e ao des­con­tí­nuo não pre­ten­de­mos des­con­si­de­rar os esfo­rços que o humano empreen­de, mas sim apon­tar que na con­dição huma­na estão entre­laça­dos tan­to tais esfo­rços – que incluem o pathos como dis­po­sição – quan­to o impre­vi­sí­vel que deles esca­pa. Ao lado de Derri­da (2001) e Naves e Sou­za (2012), enten­de­mos que ao incluir o aca­so, o impre­vi­sí­vel, em nos­sa cons­ti­tuição sub­je­ti­va amplia­mos tan­to nos­sas pos­si­bi­li­da­des de supor­tar a adver­si­da­de quan­to de olhar o mun­do pelo fio de luz de fres­tas até então des­con­si­de­ra­das:

Trans­for­man­do a con­jun­tu­ra huma­na do impre­vi­sí­vel e do alea­tó­rio em con­dição huma­na que se situa para além da lógi­ca for­mal, isto é, for­ne­cen­do um limi­te, mes­mo fic­cio­nal, a um cor­po estranho, nós nos tor­na­mos menos inca­pa­zes para supor­tá-lo na con­dição do que esca­pa a pre­vi­são e ao con­tro­le. Nes­ta con­dição, por um lado não impor­tam as “habi­li­da­des do joga­dor”, pois, o ganho e a per­da são deter­mi­na­dos por um con­jun­to de cau­sas mui­to peque­nas ou mui­to com­ple­xas para que algum resul­ta­do pos­sa ser pre­vis­to. Por outro lado, ao sobre­va­lo­ri­zar essas habi­li­da­des entram em cena as supos­tas qua­li­fi­cações de cada humano, […] que via­bi­li­zam a com­pe­tên­cia ou a incom­pe­tên­cia, bem como, a cul­pa ou a res­pon­sa­bi­li­da­de, peran­te as diver­sas situações coti­dia­nas (Naves & Sou­za, 2012, p. 8).

O aca­so, cons­ti­tuin­te do cal­do coti­diano em que vive­mos imer­sos, ten­de a ser des­con­si­de­ra­do fren­te à ânsia de tudo pla­ne­jar e pre­ver, como se pos­sí­vel fos­se esta­be­le­cer ligações de cau­sa e efei­to de for­ma a obter os resul­ta­dos desejá­veis. Tal pers­pec­ti­va se conec­ta à lógi­ca for­mal esta­be­le­cen­do uma relação dire­ta entre os acon­te­ci­men­tos e as inte­nções e von­ta­des do sujei­to; ope­ra-se uma equação linear entre cau­sa-cons­ciên­cia-von­ta­de-ação-efei­to que, em nos­so olhar, con­ce­be um homem oni­po­ten­te, não cas­tra­do. A conhe­ci­da expres­são freu­dia­na de que o atra­ves­sa­men­to do incons­cien­te impos­si­bi­li­ta ao humano ser senhor em sua pró­pria casa (Freud, 1916/1981) cons­ti­tui em aspec­to de peso para pro­ble­ma­ti­zar a con­dição de oni­po­tên­cia aci­ma men­cio­na­da. Entre­tan­to, para além dela, tam­bém em Freud (1910/1981) encon­tra­mos o aca­so como algo que nos esca­pa (e nos des­ti­na) des­de sem­pre:

Con­si­de­rar que o aca­so não pode deter­mi­nar nos­so des­tino nada mais é do que uma recaí­da ao pon­to de vis­ta reli­gio­so sobre o Uni­ver­so, que o pró­prio Leo­nar­do esta­va a pon­to de supe­rar quan­do escre­veu que o sol não se move. Natu­ral­men­te, fica­mos decep­cio­na­dos por ver que duran­te nos­sa infân­cia mais remo­ta, perío­do tão vul­ne­rá­vel de nos­sas vidas, um Deus jus­to e uma pro­vi­dên­cia bon­do­sa não nos pro­te­gem melhor con­tra tais influên­cias. Mas ao pen­sar assim esque­ce­mos que real­men­te em tudo, de fato, o que influi em nos­sa vida é sem­pre o aca­so, des­de nos­sa gêne­se a par­tir do encon­tro de um esper­ma­to­zói­de com um óvu­lo − aca­so que, no entan­to, par­ti­ci­pa das leis e neces­si­da­des da natu­re­za, fal­tan­do-lhe ape­nas qual­quer ligação com nos­sos desejos e ilu­sões (Freud, 1910/1981, p. 1619).

A pers­pec­ti­va do Sis­te­ma de Garan­tia de Direi­tos é de pro­teção, com o que não dis­cor­da­mos. Entre­tan­to, enten­de­mos ser impor­tan­te incluir em tal pers­pec­ti­va os limi­tes des­sa pro­teção, não somen­te por­que podem exis­tir falhas no fun­cio­na­men­to e arti­cu­lação dos ser­viços que inte­gram esse Sis­te­ma, mas tam­bém por­que o aca­so inte­gra a reali­da­de. É impor­tan­te refo­rçar que não pro­po­mos sejam abo­li­dos os esfo­rços de pro­teção, mas sim que nes­tes esfo­rços seja incluí­da a dimen­são do aca­so como pos­si­bi­li­da­de que defi­ne nos­sos des­ti­nos, como dimen­são ineren­te aos nos­sos pro­ces­sos de conhe­ci­men­to. Des­ta for­ma esca­pa­mos da pers­pec­ti­va que toma como pon­to de par­ti­da a inte­nção e a von­ta­de de deter­mi­na­do sujei­to para pre­ver os efei­tos delas deco­rren­tes e, assim, esta­be­le­ce uma relação de natu­re­za linear-ime­dia­ta entre cau­sa e efei­to, carac­te­rís­ti­ca da lógi­ca for­mal.

Con­si­de­ran­do o uni­ver­so de nos­sa pes­qui­sa e as pala­vras de Freud aci­ma cita­das, se acre­di­ta­mos que no tra­balho de ate­nção à cria­nça e ao ado­les­cen­te – atra­vés de enca­minha­men­tos, diag­nós­ti­cos, lau­dos, deci­sões – pode­mos des­con­si­de­rar o aca­so, esta­mos ope­ran­do com uma con­ce­pção de ciên­cia de cará­ter divino, que pode tudo cal­cu­lar, pre­ver, pre­ve­nir, pro­te­ger. E quan­do a reali­da­de não se mos­trar como pre­vis­to, o resul­ta­do será lido como erro téc­ni­co (dos pro­fis­sio­nais) ou fal­ta de von­ta­de (da famí­lia ou da cria­nça-ado­les­cen­te).

Na obra de Freud (1910, 1916–17, 1937/1981) obser­va­mos que a sin­gu­la­ri­da­de e o aca­so com­põem o con­jun­to de aspec­tos que defi­nem a etio­lo­gia da neu­ro­se de for­ma a não deli­mi­tar um fator cau­sal que leve a um efei­to espe­cí­fi­co. Não é pre­pon­de­ran­te a ideia de se defi­nir uma ori­gem para a oco­rrên­cia de deter­mi­na­da neu­ro­se, mas sim de expan­dir o olhar aos pos­sí­veis que se entre­laçam nes­sa oco­rrên­cia, pos­si­bi­li­tan­do encon­trar ver­da­des que não se excluem uma em relação a outra para que se che­gue a “uma ver­da­de”. Nes­ta direção, a pro­po­sição para pro­du­zir conhe­ci­men­to diver­ge daque­la nor­tea­da pela ciên­cia posi­ti­va dos tem­pos de Freud, pre­sen­te ain­da na con­tem­po­ra­nei­da­de (Freud, 1916/1981).

Dian­te do expos­to, pode­mos afir­mar que na for­ma con­jun­ta – o aca­so como ele­men­to da reali­da­de exte­rior e como potên­cia da vida psí­qui­ca (pul­sio­nal) – é refo­rça­do o olhar à impos­si­bi­li­da­de da tota­li­da­de da pre­vi­são e do con­tro­le pro­pos­tos na lógi­ca for­mal, pois sem­pre há algo que nos esca­pa, a par­tir do que se dão acon­te­ci­men­tos cujas res­so­nân­cias fogem a toda e qual­quer pre­vi­si­bi­li­da­de. Tal lei­tu­ra sobre o aca­so visa “colo­car em diá­lo­go” aspec­tos da pro­dução de conhe­ci­men­to (e da prá­ti­ca clí­ni­ca) por vezes dis­so­cia­dos ou, ain­da, como pas­sí­veis de serem des­car­ta­dos: “[…] o con­jun­to do real da expe­riên­cia e o con­jun­to do fun­cio­na­men­to do apa­relho psí­qui­co” (Mace­do, 1997, p. 8).

Ao con­trá­rio do que se pos­sa supor, con­si­de­rar a dimen­são do aca­so não sig­ni­fi­ca des­ca­so ou aban­dono de bus­ca de relações entre con­tex­tos e pes­soas, mas sim pos­si­bi­li­tar aber­tu­ra ao impon­de­rá­vel, con­dição que carac­te­ri­za a dife­re­nça, a alte­ri­da­de, bem como pos­si­bi­li­tar a crí­ti­ca à con­ce­pção que advo­ga a pre­vi­si­bi­li­da­de com­ple­ta via a atri­buição da inten­cio­na­li­da­de huma­na e da cau­sa­li­da­de linear. É opor­tuno reto­mar aspec­tos do que foi expos­to ante­rior­men­te atra­vés das ideias de Naves e Sou­za (2012) ao toma­ram as situações da bala per­di­da e da mega-sena como recor­tes do coti­diano que pro­ble­ma­ti­zam as estra­té­gias da con­dição huma­na para con­tor­nar a impre­vi­si­bi­li­da­de e o des­con­tí­nuo. Para os auto­res, “o humano no seu des­am­pa­ro e dor peran­te a inco­men­su­ra­bi­li­da­de e o inex­pri­mí­vel na natu­re­za, no outro e no pró­prio psi­quis­mo, ado­ta o pro­ce­di­men­to de esta­be­le­cer sen­ti­dos a atri­buir nexos cau­sais às expe­riên­cias e acon­te­ci­men­tos que o rodeiam e o cons­ti­tuem”. (p.371)

Em outras pala­vras, quan­do acre­di­ta­mos que tudo pode­mos pre­ver e que os “des­vios” des­sa pre­vi­são cons­ti­tuem erro (a bala per­di­da), há sem­pre a supo­sição de um cul­pa­do: eu, o outro ou o poder supe­rior repre­sen­ta­do por deus ou pela ciên­cia divi­ni­za­da. Quan­do o pou­co pro­vá­vel das pre­vi­sões se con­cre­ti­za de for­ma “posi­ti­va” (ganhar na mega-sena), o fei­to é atri­buí­do a uma con­dição de mere­ci­men­to advin­da de um eu nar­ci­si­ca­men­te infla­do ou a con­jun­tu­ras cós­mi­cas a ele supe­rio­res (mas que olham por ele). Pelo des­vio ou pela rea­li­zação, o aca­so não é sig­ni­fi­ca­do como tal, mas é – para­do­xal­men­te – encap­su­la­do em lógi­cas de cau­sa e efei­to. Logo, fica ain­da por fazer a toma­da do aca­so como aca­so.

Mace­do (1997) des­ta­ca que o lugar do aca­so e da impre­vi­si­bi­li­da­de pos­si­bi­li­ta reconhe­cer um espaço inter­me­diá­rio e pro­ble­ma­ti­zar posições em que ten­são e para­noia podem se ins­ta­lar de manei­ra tota­li­zan­te. Enten­de­mos que essa obser­vação é impor­tan­te para aque­les que atuam nas situações de deci­são para reti­ra­da de cria­nças e ado­les­cen­tes da famí­lia ou ser­viços de acolhi­men­to, pois na con­dição de toma­da de deci­sões com­ple­xas, podem se con­fi­gu­rar ten­sões extre­ma­das quan­do se con­si­de­rar que a pro­teção deve ser total. Tal­vez cai­ba aos pro­fis­sio­nais tan­to o movi­men­to de bus­ca por soluções deno­mi­na­das pro­te­ti­vas na óti­ca do direi­to e daque­le que deci­de quan­to a posição de acolher o aca­so como reconhe­ci­men­to de limi­te do con­tro­le por par­te do humano e como esfo­rço de se apro­xi­mar do outro, ou seja, naqui­lo em que a sin­gu­la­ri­da­de des­te outro pos­sa tra­zer como acon­te­ci­men­to. O que, de fato, não pode­mos ter a míni­ma ideia, seja qual for o espaço de atuação do pro­fis­sio­nal impli­ca­do:

Às vezes o aca­so se pro­lon­ga no espaço da pró­pria aná­li­se: o calor do verão tra­rá uma mulher boni­ta, com seios triun­fan­tes e per­nas mara­vilho­sas, até então escon­di­dos debai­xo de ves­ti­dos de cores tris­tes. Uma outra encon­tra­rá um per­fu­me tão har­mo­nio­so que se pode­rá notar como é agra­dá­vel à sua pele; este homem seve­ro virá à sua ses­são de ber­mu­das, per­mi­tin­do à cria­nça de calças cur­tas, final­men­te, assu­mir um lugar na par­ti­da que ele joga e que se cha­ma sua vida. (Mace­do, 1997, p. 10).

Não há como negar serem esses caminhos em que a con­dição de ris­co inte­gra a cena da exis­tên­cia – como sem­pre o é –, sem o dei­xar esca­mo­tea­do. Na expres­são de Pel­bart (2000), há momen­tos em que a deci­são sobre o rumo das coi­sas (no tea­tro e na vida) fica um por um triz:

É por um triz que tudo acon­te­ce, mas esse por um triz não é ocul­ta­do – ele sub­jaz a cada ges­to e o faz vibrar. Não é só que a segu­ra­nça do mun­do se vê aba­la­da, mas esse aba­lo intro­duz no mun­do (ou ape­nas lhe des­ve­la) seu coefi­cien­te de inde­ter­mi­nação, de jogo e de aca­so (Pel­bart, 2000, p. 102).

Considerações finais

Em mais de uma situação que inte­grou o cam­po de pes­qui­sa os ope­ra­do­res men­cio­nam supo­sição e apro­xi­mação do que deno­mi­na­ram como sofri­men­to das pes­soas em relação às quais pre­ci­sa­vam enca­minhar deci­sões. Nes­se movi­men­to de pro­xi­mi­da­de, os ope­ra­do­res tam­bém indi­cam um sofri­men­to pró­prio. No con­jun­to de nos­sas lei­tu­ras sobre tais rela­tos, deli­nea­mos que a expres­são “sofri­men­to” é nes­sas falas uti­li­za­da na ace­pção do sen­so comum, e apon­ta­mos que a pers­pec­ti­va das afe­cções pos­si­bi­li­ta a lei­tu­ra de que nes­se con­ta­to com o outro o que emer­ge é a angús­tia. Nes­te recor­te, ganha expres­são o lugar que um e outro ocu­pam nas corres­pon­den­tes cenas psí­qui­cas atra­ves­sa­das pela trans­fe­rên­cia que carac­te­ri­za as relações huma­nas. Ou seja, ao reco­rrer à lei, a inter­pre­tação des­se tex­to não se dá ape­nas pela razão, mas tam­bém pela afe­cção. Na pro­xi­mi­da­de com o sofri­men­to do outro, que pela afe­tação evi­den­cia a angús­tia, pode­mos apon­tar à dimen­são éti­ca em que a trans­for­mação da angús­tia emer­ge como impe­ra­ti­vo para enca­minhar deci­sões por caminhos diver­sos, não sabi­dos a prio­ri.

Por um lado, a angús­tia engen­dra­da no pro­ces­so de deci­são pode enve­re­dar pela pers­pec­ti­va do sofri­men­to tal como pos­tu­la­do pela tra­dição hege­mô­ni­ca que man­tém as pola­ri­da­des hie­rár­qui­cas do ati­vo e do pas­si­vo, que no caso espe­cí­fi­co situa­ria o ope­ra­dor do Sis­te­ma de Garan­tia de Direi­tos como ati­vo (pois deve cui­dar, pro­te­ger, agir), enquan­to a cria­nça-ado­les­cen­te-famí­lia seria alo­ca­da na con­dição de pas­si­va (inca­paz, des­pro­te­gi­da, sobre quem recai a ação). Nes­sa pers­pec­ti­va, o outro – em sua con­dição mes­ma de alte­ri­da­de – é des­con­si­de­ra­do por aque­le que deci­de, vis­to que lhe é ende­reça­da a con­dição de refém do supos­ta­men­te ati­vo. Seria essa uma óti­ca hege­mô­ni­ca que, anco­ra­da na pers­pec­ti­va dos direi­tos, nor­te­ia polí­ti­cas públi­cas e ins­ti­tuições que inte­gram o SGD? Por outro, pela angús­tia pode se fazer pos­sí­vel o reconhe­ci­men­to da com­ple­xi­da­de do humano, sua con­dição con­fli­tuo­sa, inde­ter­mi­na­da, trá­gi­ca, des­li­zan­do assim a uma éti­ca em que é sabi­do não exis­ti­rem caminhos rápi­dos e fáceis. Tal supor­ta­bi­li­da­de da angús­tia (e da incer­te­za do aca­so) não exclui o impe­ra­ti­vo da deci­são, mas pode abrir espaço ao movi­men­to que bus­ca alter­na­ti­vas nem sem­pre con­ven­cio­nais.

Ao se des­lo­car para além das lógi­cas for­mais e linea­res que bus­cam ope­rar com a pre­vi­si­bi­li­da­de e o con­tro­le, pode­mos dizer que no “caso”, aci­ma men­cio­na­do, não era pos­sí­vel aos pro­fis­sio­nais pre­ve­rem que have­ria um incên­dio. Da mes­ma manei­ra, não é pos­sí­vel asse­gu­rar que deter­mi­na­das for­mas de viver sejam equa­cio­na­das a ris­cos que, por sua vez, levem ao impe­ra­ti­vo da pro­teção (supos­ta). Qual vida? Qual ris­co? Qual pro­teção? Não sabe­mos. Ras­tros da dimen­são fini­ta de nos­sa con­dição huma­na e impre­ci­sa das deci­sões. Tal­vez, o esfo­rço de olhar pelas fres­tas pos­sa levar a outras impre­vi­sí­veis pos­si­bi­li­da­des. Tal­vez sim, tal­vez não.

Referências

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Notas

1.Psi­có­lo­ga e Psi­ca­na­lis­ta; Dou­to­ra em Psi­co­lo­gia pela UFSC – Uni­ver­si­da­de Fede­ral de San­ta Cata­ri­na – Bra­sil; Espe­cia­lis­ta em Teo­ria Psi­ca­na­lí­ti­ca pela PUC-SP. Rua Lau­ro Linha­res, 2123, sala 706 A – Trin­da­de – Flo­ria­nó­po­lis – SC – Bra­sil – 88.036–002. E‑mail: analucia@floripa.com.br

2.Pro­fes­so­ra na Gra­duação e no Pro­gra­ma de Pós Gra­duação em Psi­co­lo­gia na UFSC – Uni­ver­si­da­de Fede­ral de San­ta Cata­ri­na – Bra­sil; Dou­to­ra em Psi­co­lo­gia pela PUC – Pon­ti­fí­cia Uni­ver­si­da­de Cató­li­ca de São Pau­lo; Pós Dou­to­ra­do no CES – Cen­tro de Estu­dos Sociais da Uni­ver­si­da­de de Coim­bra; Psi­có­lo­ga. Depar­ta­men­to de Psi­co­lo­gia – CFH – UFSC – Cam­pus Trin­da­de – 88040910 – Flo­ria­nó­po­lis – Bra­sil. Email: meritisouza@yahoo.com.br

3.Tais ser­viços se sub­di­vi­dem em: Casa de Pas­sa­gem, Casa-Lar, Abri­go Ins­ti­tu­cio­nal, Ser­viço de Acolhi­men­to em Famí­lia Acolhe­do­ra. No caso espe­cí­fi­co des­te estu­do nos ocu­pa­mos ape­nas das moda­li­da­des Casa-Lar e Abri­go Ins­ti­tu­cio­nal, refe­ri­dos como sinô­ni­mos, atra­vés das expres­sões “ser­viço de acolhi­men­to”, “ins­ti­tuição”, “ins­ti­tuição de acolhi­men­to” e “abri­go”.

4.O arti­go toma como base a tese de dou­to­ra­do Deci­dir é (im)preciso: sobre a reti­ra­da de cria­nças e ado­les­cen­tes de suas famí­lias ou ser­viços de acolhi­men­to orien­ta­da pela Pro­fa. Dra. Méri­ti de Sou­za, defen­di­da por Ana Lúcia Cin­tra em 2015 na UFSC – Uni­ver­si­da­de Fede­ral de San­ta Cata­ri­na – Bra­sil. A pes­qui­sa obte­ve apro­vação do Comi­tê de Éti­ca em Pes­qui­sa (CEP) da Uni­ver­si­da­de Fede­ral de San­ta Cata­ri­na sob o Pare­cer nº 1056952.

6.Visan­do não iden­ti­fi­car pes­soas entre­vis­ta­das e no intui­to de esca­par das arma­dilhas do mas­cu­lino como gêne­ro hege­mô­ni­co no uso do plu­ral, opta­mos pelo “@” em subs­ti­tuição ao “a” e ao “o”.