A importância do brincar na prática psicológica no Brasil: algumas análises Descargar este archivo (A importancia do brincar.pdf)

Laura Christofoletti da Silva Gabriel[1], Mériti de Souza[2], Gustavo Angeli[3]

Resumo

O brin­car ocu­pa lugar fun­da­men­tal na cons­ti­tuição sub­je­ti­va e na cons­trução da relação da cria­nça com o mun­do. Entre­tan­to, na cul­tu­ra con­tem­po­râ­nea dis­se­mi­nou-se a con­ce­pção que des­qua­li­fi­ca a brin­ca­dei­ra e a opõe às ati­vi­da­des con­si­de­ra­das efi­cien­tes e pro­du­ti­vas. Nos­so obje­ti­vo é apre­sen­tar refe­rên­cias teó­ri­cas que qua­li­fi­cam a brin­ca­dei­ra e afir­mam a sua impor­tân­cia para a orga­ni­zação do sujei­to e para o des­en­vol­vi­men­to infan­til. Rea­li­za­mos uma pes­qui­sa qua­li­ta­ti­va teó­ri­ca na qual foram sele­cio­na­das obras de auto­res de diver­sas abor­da­gens que ana­li­sam as relações entre a ati­vi­da­de do brin­car e o sujei­to. Ato con­tí­nuo, tam­bém sele­cio­na­mos obras de auto­res bra­si­lei­ros que ana­li­sam a temá­ti­ca da prá­ti­ca psi­co­ló­gi­ca uti­li­zan­do a brin­ca­dei­ra. Con­cluí­mos pela impor­tân­cia do reconhe­ci­men­to des­sa ati­vi­da­de para a orga­ni­zação sub­je­ti­va e pela neces­si­da­de da sua afir­mação no tra­balho psi­co­ló­gi­co.

Pala­vras-cha­ve: Sub­je­ti­vi­da­de; Brin­car; Prá­ti­ca Psi­co­ló­gi­ca; Bra­sil.

Resumen

Jugar ocu­pa un lugar fun­da­men­tal en la cons­ti­tu­ción y cons­truc­ción sub­je­ti­va de la rela­ción del niño con el mun­do. Sin embar­go, en la cul­tu­ra con­tem­po­rá­nea se ha difun­di­do una con­cep­ción que des­ca­li­fi­ca el jue­go y lo con­tra­po­ne a las acti­vi­da­des con­si­de­ra­das como efi­cien­tes y pro­duc­ti­vas. Nues­tro obje­ti­vo es pre­sen­tar refe­ren­tes teó­ri­cos que cua­li­fi­quen el jue­go y afir­men su impor­tan­cia para la orga­ni­za­ción del suje­to y para el desa­rro­llo infan­til. Rea­li­za­mos una inves­ti­ga­ción cua­li­ta­ti­va teó­ri­ca en la que se selec­cio­na­ron tra­ba­jos de auto­res de dife­ren­tes enfo­ques que ana­li­zan las rela­cio­nes entre la acti­vi­dad de jugar y el suje­to. Des­pués, fue­ron selec­cio­na­das obras de auto­res bra­si­le­ños que ana­li­zan el tema de la prác­ti­ca psi­co­ló­gi­ca a tra­vés del jue­go. Con­clui­mos la gran impor­tan­cia del reco­no­ci­mien­to de esta acti­vi­dad para la orga­ni­za­ción sub­je­ti­va y la nece­si­dad de su afir­ma­ción en el tra­ba­jo psi­co­ló­gi­co.

Pala­bras cla­ve: sub­je­ti­vi­dad; jugar; prác­ti­ca psi­co­ló­gi­ca; Bra­sil.

Introdução

Pen­sa­mos na brin­ca­dei­ra como um ele­men­to impor­tan­te para a cons­ti­tuição da sub­je­ti­vi­da­de e do conhe­ci­men­to, mes­mo que para os pres­su­pos­tos hege­mô­ni­cos da moder­ni­da­de a brin­ca­dei­ra seja um ele­men­to recal­ca­do e des­qua­li­fi­ca­do como for­ma de conhe­cer e de sub­je­ti­var. Neces­sá­rio res­sal­tar que pesquisadoras(es) das mais varia­das e dife­ren­cia­das matri­zes teó­ri­cas afir­mam a impor­tân­cia do brin­car no tra­balho de ela­bo­ração psí­qui­ca e na orga­ni­zação da cul­tu­ra geral e da manu­te­nção da cul­tu­ra lúdi­ca. Entre­tan­to, con­si­de­ra­mos que ain­da per­ma­ne­ce nas teo­rias hege­mô­ni­cas sobre a sub­je­ti­vi­da­de a lei­tu­ra sobre o brin­car como uma ati­vi­da­de dis­pen­sá­vel. Exis­te uma con­ce­pção dis­se­mi­na­da na cul­tu­ra que opõe a ati­vi­da­de do brin­car às ati­vi­da­des con­si­de­ra­das sérias e pro­du­ti­vas, na medi­da em que estas últi­mas apre­sen­ta­riam resul­ta­dos, ou seja, pro­du­tos ime­dia­tos, úteis e con­cre­tos.

Acre­di­ta­mos que a des­qua­li­fi­cação da brin­ca­dei­ra pre­sen­te nos dis­cur­sos hege­mô­ni­cos que domi­nam o modo de sub­je­ti­var e o modo de conhe­cer na socie­da­de oci­den­tal este­ja asso­cia­da aos pres­su­pos­tos que acom­panham a ati­vi­da­de do brin­car. Ou seja, o mode­lo hege­mô­ni­co sobre a cons­ti­tuição sub­je­ti­va que ele­geu o sujei­to cog­nos­cen­te com a sub­je­ti­vi­da­de res­tri­ta à cons­ciên­cia e sobre o modo de conhe­cer res­tri­to à razão, des­qua­li­fi­ca e exclui outras moda­li­da­des e teo­rias que extra­po­lam essas con­ce­pções, o que inclui a des­qua­li­fi­cação da brin­ca­dei­ra, das artes, da lite­ra­tu­ra, den­tre outras. Assim, os pres­su­pos­tos da moder­ni­da­de liga­dos à subs­tân­cia, a lógi­ca for­mal, a iden­ti­da­de, não con­tra­dição, con­ti­nui­da­de, den­tre outros, são valo­ri­za­dos e acom­panham as teo­rias domi­nan­tes con­fi­gu­ran­do relações de poder (Chauí, 1996; Fou­cault, 2012).

Des­sa for­ma, as ati­vi­da­des que envol­vem esses pres­su­pos­tos são con­si­de­ra­das pro­du­ti­vas e dire­cio­na­das ao des­en­vol­vi­men­to do humano e da socie­da­de, ao pas­so que ati­vi­da­des que envol­vem pres­su­pos­tos como, por exem­plo, nega­ti­vo, devir, des­con­tí­nuo, incons­cien­te, inde­ci­dí­vel, são con­si­de­ra­das com­pro­me­te­do­ras do des­en­vol­vi­men­to da sub­je­ti­vi­da­de e do conhe­ci­men­to (Fou­cault, 2012). No caso espe­cí­fi­co do brin­car, enten­de­mos que essa ati­vi­da­de é des­qua­li­fi­ca­da, pois, não pro­duz um resul­ta­do ime­dia­to e visí­vel no sen­ti­do de um pro­du­to final e útil, bem como, pelo fato dela expli­ci­tar o fun­cio­na­men­to do devir, do vir a ser, do des­con­tí­nuo, do aca­so, do inde­ci­dí­vel.

Con­si­de­ran­do estes aspec­tos, nos inter­es­sa nes­te arti­go qua­li­fi­car a brin­ca­dei­ra e apon­tar sua impor­tân­cia na cons­ti­tuição sub­je­ti­va, bem como, sua neces­si­da­de para o des­en­vol­vi­men­to da cria­nça e para o tra­balho de pro­fis­sio­nais da Psi­co­lo­gia. De for­ma espe­cí­fi­ca, obje­ti­va­mos pro­ble­ma­ti­zar a prá­ti­ca do brin­car con­si­de­ran­do sua poten­cia­li­da­de para a cons­ti­tuição sub­je­ti­va a par­tir da aná­li­se do tra­balho de autores(as) de dife­ren­tes áreas do conhe­ci­men­to, bem como, corro­bo­rar o reconhe­ci­men­to da impor­tân­cia do brin­car na cons­ti­tuição sub­je­ti­va e na prá­ti­ca psi­co­ló­gi­ca, a par­tir do tra­balho de psicólogos(as) bra­si­lei­ros.

Para a efe­ti­vação dos obje­ti­vos pro­pos­tos rea­li­za­mos uma pes­qui­sa qua­li­ta­ti­va e teó­ri­ca sen­do que os mate­riais de estu­do, ou seja, os(as) autores(as) e os tex­tos, foram sele­cio­na­dos con­si­de­ran­do o seu reconhe­ci­men­to acer­ca do brin­car e da cons­ti­tuição sub­je­ti­va. Assim, rea­li­za­mos uma revi­são biblio­grá­fi­ca con­si­de­ran­do a qua­li­da­de dos(as) autores(as) e das obras sele­cio­na­das e seu poten­cial para pro­du­zir conhe­ci­men­to sobre o tema inves­ti­ga­do a par­tir de mate­riais publi­ca­dos (Gerhardt & Sil­vei­ra, 2009).  A par­tir da lei­tu­ra ini­cial des­ses mate­riais sele­cio­na­dos, foram rea­li­za­dos ficha­men­tos de lei­tu­ra e cria­dos rotei­ros temá­ti­cos que per­mi­ti­ram sis­te­ma­ti­zar seus con­teú­dos e orga­ni­zar a aná­li­se. Ain­da, para a aná­li­se foram con­si­de­ra­dos o eixo temá­ti­co abor­da­do sobre a brin­ca­dei­ra e a cons­ti­tuição sub­je­ti­va.

A par­tir des­sa pers­pec­ti­va, apre­sen­ta­mos algu­mas das teo­rias de diversas(os) pesquisadoras(es), que mes­mo sen­do de áreas de conhe­ci­men­to dife­ren­tes (psi­ca­ná­li­se, his­tó­ria, peda­go­gia, psi­co­lo­gia, socio­lo­gia) e com con­ce­pções de sujeita(o) dife­ren­tes, valo­ri­zam a impor­tân­cia do brin­car e sua relação com a sub­je­ti­vi­da­de. Loca­li­za­mos autoras(es) clássicas(os) e indis­pen­sá­veis como Wal­ter Ben­ja­min (2002;1994), Johan Hui­zin­ga (1971), Gilles Brou­gè­re (2010), Lev Vygotsky (1984), Donald Win­ni­cott (1975), Fra­nçoi­se Dol­to (2007), que par­tem de abor­da­gens teó­ri­cas dife­ren­tes, mas que cons­troem ela­bo­ra­das teo­rias sobre a relação entre a brin­ca­dei­ra, o brin­que­do e a cons­ti­tuição sub­je­ti­va. Ain­da loca­li­za­mos no cená­rio bra­si­lei­ro autores(as) como Tizu­ko Mor­chi­da Kishi­mo­to (1994; 1996), Ana Mar­ta Mei­ra (2003a; 2003b) e Julie­ta Jeru­sa­linsk (2009), que pro­ble­ma­ti­zam a relação da brin­ca­dei­ra e do brin­car com a pro­dução da cul­tu­ra local, bem como, tra­balham na prá­ti­ca psi­co­ló­gi­ca reco­rren­do às brin­ca­dei­ras.

A brincadeira eo jogo na história ocidental: Algumas leituras

Wal­ter Ben­ja­min (2002), filó­so­fo e soció­lo­go ale­mão, escre­ve sobre a his­tó­ria cul­tu­ral do brin­que­do, e con­ta que no iní­cio os brin­que­dos não foram inve­nções de fabri­can­tes espe­cia­li­za­dos, mas sur­gi­ram nas ofi­ci­nas de entalha­do­res, mar­ce­nei­ros, fun­di­do­res de estanho, etc. O autor expli­ca que o esti­lo e a bele­za das peças mais anti­gas se davam por ser o brin­que­do um pro­du­to secun­dá­rio das ofi­ci­nas manu­fa­tu­rei­ras, que só podiam fabri­car o que com­pe­tia ao seu ramo. Entre­tan­to, ao lon­go do sécu­lo XVIII, começa o bur­bu­rinho de uma pro­dução espe­cia­li­za­da, que fez com que o mes­mo brin­que­do com mate­riais dife­ren­tes pas­sas­se por várias mãos, enca­re­cen­do os cus­tos. O autor tam­bém nos con­ta que mui­tos artis­tas que pro­du­ziam obras gran­des para as Igre­jas, neces­si­ta­ram reorien­tar seu tra­balho após a Refor­ma, e começa­ram a pro­du­zir obje­tos arte­sa­nais para a deco­ração domés­ti­ca, e foi assim que se deu a difu­são dos obje­tos minúscu­los que faziam a ale­gria das cria­nças nas estan­tes de casa.

Quan­do se fala nos brin­que­dos, para Ben­ja­min (1994) é impor­tan­te que se lem­bre não ape­nas das cria­nças, mas dos adul­tos que os pro­du­zem, pois ao ima­gi­nar as bone­cas de bétu­la ou de palha e os navios de estanho, os adul­tos esta­riam inter­pre­tan­do a seu modo a sen­si­bi­li­da­de infan­til. Ele com­ple­ta dizen­do que as cria­nças não são uma comu­ni­da­de iso­la­da, mas fazem par­te do povo e da clas­se a que per­ten­cem, logo, os seus brin­que­dos são um mudo diá­lo­go de sinais entre a cria­nça e o seu povo.

O autor afir­ma que, ante­rior­men­te, acre­di­ta­va-se que a brin­ca­dei­ra era deter­mi­na­da pelo con­teú­do ima­gi­ná­rio do brin­que­do, quan­do na ver­da­de, a ideia é con­trá­ria a esta supo­sição. Ele pro­põe que o que rege a tota­li­da­de do mun­do dos jogos é a lei da repe­tição, pois nada faz uma cria­nça mais feliz do que o “mais uma vez”. Ben­ja­min (1994) pen­sa que a “obs­cu­ra com­pul­são por repe­tição não é no jogo menos pode­ro­sa, toda expe­riên­cia deseja insa­cia­vel­men­te até o final de todas as coi­sas, repe­tição e retorno” (p. 101). Ain­da, Ben­ja­min (2002) diz que a essên­cia do brin­car não é “fazer como se”, mas um “fazer sem­pre de novo”, trans­for­man­do a expe­riên­cia em hábi­to. Ou seja, é atra­vés do jogo que os hábi­tos são ins­ta­la­dos, por­tan­to, segun­do o autor, se fizer­mos com que a cria­nça enten­da que comer, dor­mir e se ves­tir são ati­vi­da­des lúdi­cas, logo isto seria um hábi­to atra­vés da brin­ca­dei­ra.

Johan Hui­zin­ga (1971) his­to­ria­dor e lin­guis­ta holan­dês, pro­du­ziu mui­to con­teú­do a res­pei­to do jogo na cul­tu­ra, já que para ele a cul­tu­ra é um jogo no sen­ti­do de que sur­ge no pró­prio jogo. Ele pon­tua que encon­tra­mos o jogo como um ele­men­to dado exis­ten­te antes da pró­pria cul­tu­ra, que acom­panha e mar­ca des­de as mais dis­tan­tes ori­gens até a civi­li­zação em que ago­ra nos encon­tra­mos. O autor afir­ma que o jogo é uma função da vida que não é pas­sí­vel de defi­nição exata em ter­mos lógi­cos, bio­ló­gi­cos ou esté­ti­cos, sen­do o jogo “uma função sig­ni­fi­can­te, isto é, ence­rra um deter­mi­na­do sen­ti­do” (p.04).

O autor enten­de que quan­to mais nos esfo­rça­mos para esta­be­le­cer uma sepa­ração entre o que nomi­na­mos “jogo” e outras for­mas rela­cio­na­das a ele, mais evi­den­cia­mos a abso­lu­ta inde­pen­dên­cia do con­cei­to de jogo, ou seja, sua exclu­são do domí­nio das gran­des opo­sições entre cate­go­rias não se detém aí, ele expli­ca que jogo não é com­preen­di­do pela antí­te­se entre sabe­do­ria e lou­cu­ra, etc., e que embo­ra seja uma ati­vi­da­de não mate­rial, não des­em­penha uma função moral.

O autor des­cre­ve ain­da carac­te­rís­ti­cas fun­da­men­tais da ati­vi­da­de do jogo: liber­da­de; eva­são da vida real; iso­la­men­to e limi­tação; ordem e ten­são. A liber­da­de refe­re-se ao fato des­sa ati­vi­da­de ser livre, con­si­de­ran­do a eva­são da vida real como a capa­ci­da­de de abso­rção do joga­dor, ou seja, toda cria­nça sabe quan­do está “só fazen­do de con­ta”. O iso­la­men­to e a limi­tação dizem res­pei­to a como o jogo dis­tin­gue-se da vida “comum”, tan­to pelo lugar, como pela duração que ocu­pa, “joga­do até o fim” den­tro de cer­tos limi­tes de tem­po e espaço. Nes­se caso temos a criação de uma ordem supre­ma, pois, uma desobe­diên­cia estra­ga o anda­men­to des­sa ati­vi­da­de. E a ten­são, seria a incer­te­za, o aca­so. É o ele­men­to da ten­são que tor­na o jogo apai­xo­nan­te e esta ten­são che­ga ao extre­mo nos jogos de azar e com­pe­tições espor­ti­vas

Sobre a brin­ca­dei­ra, Brou­gè­re (2010) tam­bém des­ta­ca alguns pon­tos que vão ao encon­tro de outras(os) autoras(es) apre­sen­ta­dos nes­te tra­balho, para ele, a brin­ca­dei­ra é uma for­ma da cria­nça viver a cul­tu­ra que a cer­ca, assim como, é ati­vi­da­de que pare­ce não bus­car nenhum resul­ta­do além do pra­zer. Ele tam­bém res­sal­ta que é uma ati­vi­da­de que per­mi­te à cria­nça a apro­priação dos códi­gos cul­tu­rais e tem papel na socia­li­zação e, por fim, des­ta­ca que é um meio da cria­nça esca­par da vida limi­tan­te e se lançar num uni­ver­so alter­na­ti­vo exci­tan­te.

No livro “O brin­car e a reali­da­de”, o pedia­tra e psi­ca­na­lis­ta inglês, Donald Win­ni­cott (1975) defen­de que a brin­ca­dei­ra é uni­ver­sal e sau­dá­vel, um ele­men­to faci­li­ta­dor do cres­ci­men­to, algo que con­duz a rela­cio­na­men­tos gru­pais e por fim, é uma for­ma de comu­ni­cação na psi­co­te­ra­pia com cria­nças.

Em sua ‘teo­ria da brin­ca­dei­ra’, Win­ni­cott (1975), des­cre­ve uma sequên­cia de rela­cio­na­men­tos sobre o pro­ces­so de des­en­vol­vi­men­to do brin­car. No pri­mei­ro está­dio, o bebê e o obje­to esta­riam fun­di­dos um no outro e a mãe orien­tar-se-ia no sen­ti­do para tor­nar con­cre­to o que o bebê esta­ria pron­to para encon­trar. No segun­do está­dio, o obje­to seria ini­cial­men­te repu­dia­do, acei­to de novo e obje­ti­va­men­te per­ce­bi­do, assim, a mãe esta­ria per­ma­nen­te­men­te osci­lan­do entre ser o que o bebê tem capa­ci­da­de de encon­trar e ser ela pró­pria. Nes­te está­dio, o autor com­ple­ta que “a impor­tân­cia do brin­car é sem­pre a pre­ca­rie­da­de do inter­jo­go entre a reali­da­de psí­qui­ca pes­soal e a expe­riên­cia de con­tro­le de obje­tos reais” (Win­ni­cott, 1975, p.71). O ter­cei­ro está­dio é a capa­ci­da­de da cria­nça em ficar (brin­car) sozinho na pre­se­nça de alguém. O quar­to e últi­mo está­dio seria o momen­to que a cria­nça per­mi­te fruir uma super­po­sição de duas áreas de brin­ca­dei­ra, ou seja, a mãe ao brin­car com o bebê pri­mei­ro ajus­ta-se às suas ati­vi­da­des lúdi­cas para depois intro­du­zir o seu brin­car (que o bebê pode acei­tar ou não), assim, esta­ria aber­to o caminho para um brin­car con­jun­to num rela­cio­na­men­to.

De uma for­ma geral, Win­ni­cott (1975), pon­tua que o brin­car é uma expe­riên­cia, “sem­pre uma expe­riên­cia cria­ti­va, uma expe­riên­cia na con­ti­nui­da­de espaço-tem­po, uma for­ma bási­ca de viver” (p. 75) e que “é no brin­car e, tal­vez ape­nas no brin­car, que a cria­nça ou o adul­to fruem sua liber­da­de de criação  (…), poden­do ser cria­ti­vo e uti­li­zar sua per­so­na­li­da­de inte­gral: e é somen­te sen­do cria­ti­vo que o indi­ví­duo des­co­bre o eu (self)” (p. 79).

Lev Vygotsky (1984), psi­có­lo­go e pen­sa­dor que articu­lou a Psi­co­lo­gia His­tó­ri­co-Cul­tu­ral, pen­sa que a ati­vi­da­de do brin­que­do não pode ser con­si­de­ra­da ape­nas como pra­ze­ro­sa, pois mui­tas outras ati­vi­da­des podem ser mais pra­ze­ro­sas, como por exem­plo, chu­par chu­pe­ta, e alguns jogos só dão pra­zer à cria­nça se ela con­si­de­rar o resul­ta­do inter­es­san­te. Ao pro­por cri­té­rios para dife­ren­ciar o brin­car da cria­nça de outras for­mas de ati­vi­da­de, ele con­clui que no brin­que­do a cria­nça cria uma situação ima­gi­ná­ria. Assim, um brin­que­do que envol­ve uma situação ima­gi­ná­ria é um brin­que­do basea­do em regras, e não exis­te brin­que­do sem regras, “a situação ima­gi­ná­ria de qual­quer for­ma de brin­que­do já con­tém regras for­mais esta­be­le­ci­das a prio­ri” (Vygotsky, 1984, p. 108). O autor é bem enfá­ti­co ao dizer que “toda situação ima­gi­ná­ria con­tém regras de uma for­ma ocul­ta e tam­bém todo jogo com regras con­tém de for­ma ocul­ta, uma situação ima­gi­ná­ria” (Vygotsky, 1984, p.108).

Vygotsky (1984) acre­di­ta que é enor­me a influên­cia do brin­que­do no des­en­vol­vi­men­to de uma cria­nça, pois é no brin­que­do que a cria­nça apren­de a agir na esfe­ra cog­ni­ti­va. Mes­mo que ele pon­tue sobre as regras na brin­ca­dei­ra, tam­bém com­preen­de que no brin­que­do os obje­tos per­dem sua força deter­mi­na­do­ra, pois, quan­do a cria­nça vê um obje­to, ela age dife­ren­te em relação àqui­lo que vê.

Dois para­do­xos esta­riam con­ti­dos no brin­que­do, segun­do Vygotsky (1984). O pri­mei­ro, é que a cria­nça ope­ra com um sig­ni­fi­ca­do alie­na­do numa situação real, e o segun­do é que, no brin­que­do a cria­nça segue o caminho de menor esfo­rço. A cria­nça brin­ca do que mais gos­ta, por­que o pra­zer está alia­do ao brin­que­do, mas con­co­mi­tan­te­men­te, pre­ci­sa seguir o caminho mais difí­cil, pois o que cons­ti­tui o caminho para o pra­zer no brin­que­do é assu­jei­tar-se às regras e renun­ciar ao que quer e às ações impul­si­vas.

Na obra ‘Eta­pas deci­si­vas da infân­cia”, Fra­nçoi­se Dol­to (2007), pedia­tra e psi­ca­na­lis­ta fran­ce­sa, des­cre­ve o brin­car como uma bus­ca pelo pra­zer e, ao lon­go do tex­to, ela arti­cu­la os meses e ida­des de vida das cria­nças com os jogos e brin­ca­dei­ras que mais lhe inter­es­sam, além de des­cre­ver a impor­tân­cia de tais jogos nes­ses momen­tos. Para ela, uma cria­nça sau­dá­vel é aque­la que “se diver­te, que se ocu­pa com qual­quer coi­sa e explo­ra tudo que está ao seu alcan­ce” (Dol­to, 2007, p. 110), por­tan­to, para ela, “pri­var uma cria­nça de brin­car, sig­ni­fi­ca pri­vá-la do pra­zer de viver” (Dol­to, 2007, p. 110).

Em jogos com­par­tilha­dos, todo jogo é media­dor de desejo, tra­zen­do con­si­go uma satis­fação e per­mi­tin­do expres­sar seu desejo aos outros, tan­to para as cria­nças quan­to para os adul­tos (Dol­to, 2007). A auto­ra ain­da pon­tua que no brin­car, exis­te um pra­zer de con­tor­nar as regras, seja nas brin­ca­dei­ras em gru­po, ou nas regras que a cria­nça impõe a si mes­ma, exis­te o pra­zer em tra­pa­cear.

A auto­ra fina­li­za o capí­tu­lo ‘A cria­nça e o jogo’, pon­tuan­do a impor­tân­cia das cria­nças varia­rem os brin­que­dos em que expe­ri­men­tam a sen­so­ria­li­da­de e a inte­li­gên­cia, para ela um jogo que não tem o ele­men­to sur­pre­sa, que não ques­tio­na mais é inú­til e estor­va a cria­nça. A impor­tân­cia da tro­ca de brin­que­dos é fazer com que a cria­nça seja inven­ti­va, cria­ti­va, des­co­brir os mate­riais que cons­ti­tuem cada brin­que­do e ini­ciar-se no pra­zer e limi­tes que cada brin­que­do pos­sui. Segun­do Dol­to (2007, p.118), “brin­car é apren­der a ser, é apren­der a viver tan­to sozinho, quan­to com os outros tro­can­do brin­que­dos”, exce­to aque­les que são obje­tos tran­si­cio­nais e devem ser pro­te­gi­dos pela cria­nça.

O brincar em diferentes abordagens teóricas no Brasil

Tra­zen­do ago­ra o deba­te para o cená­rio con­tem­po­râ­neo bra­si­lei­ro loca­li­za­mos Ana Mar­ta Mei­ra, psi­có­lo­ga, psi­ca­na­lis­ta e dou­to­ra em edu­cação. Mei­ra (2003a), faz suas aná­li­ses a par­tir de lei­tu­ras da psi­ca­ná­li­se e à luz de Wal­ter Ben­ja­min, crian­do uma inter­se­cção entre a his­tó­ria do brin­que­do e do brin­car com os ele­men­tos des­tes na atua­li­da­de. Para a auto­ra, na atua­li­da­de a pro­dução mas­si­va e capi­ta­lis­ta dos brin­que­dos plas­ti­fi­ca­dos con­fe­re ao sujei­to um lugar onde o sin­gu­lar encon­tra-se frag­men­ta­do na mul­ti­pli­ci­da­de que o regem, assim, os brin­que­dos evo­cam as for­mações do social, “são obje­tos que reve­lam em sua con­fi­gu­ração os traços da cul­tu­ra em que se ins­cre­vem” (Mei­ra, 2003a, p. 75).

A auto­ra pon­tua que para as cria­nças sus­pen­de­rem o tem­po e brin­car, é hoje um ato de extre­mo des­afio con­tra os apa­relhos vir­tuais. Os pais ofe­re­cem às cria­nças os obje­tos que lhes são mos­tra­dos vir­tual­men­te, em uma dimen­são de exces­so, para os pais é como a dimen­são de brin­car com o que fal­ta, onde o obje­to encon­tra-se sub­traí­do. Mei­ra (2003a) relem­bra que Ben­ja­min (2002) dis­cu­te a trans­for­mação do brin­que­do como efei­to da indus­tria­li­zação, que vai mar­car o dis­tan­cia­men­to entre as cria­nças e seus pais que, antes, pro­du­ziam jun­tos.

Algo extre­ma­men­te impor­tan­te que Mei­ra (2003a) acen­tua em seu arti­go, é a ten­ta­ti­va de dife­ren­ciar jogo e brin­ca­dei­ra. Para ela, os jogos esta­riam hoje, mais no sen­ti­do do vir­tual, liga­do a video-games, enquan­to as brin­ca­dei­ras seriam o con­ta­to da cria­nça com obje­tos, movi­men­tação cor­po­ral e até con­ta­to com outras cria­nças. Para ela, pode­ría­mos con­si­de­rar “vídeo-games como sen­do vias de pas­sa­gem do brin­car ao jogo” (Mei­ra, 2003a, p. 84), entre­tan­to os jogos vir­tuais têm pre­va­le­ci­do sobre o brin­car com obje­tos ou brin­que­dos. Ela ques­tio­na quais os pos­sí­veis efei­tos des­ta nova posição da cria­nça, “que encon­tra-se enlaça­da ao teci­do social con­tem­po­râ­neo, onde a tec­no­lo­gia é hege­mô­ni­ca e pre­va­le­ce no brin­car” (Mei­ra, 2003a, p. 84). Por fim, a auto­ra ilus­tra que o “brin­car é teci­do por his­tó­rias e a tra­ves­sia pelos brin­que­dos fei­tos com arte, ela­bo­ra­dos com as mãos das cria­nças e dos adul­tos que as cer­cam, repre­sen­ta uma via pos­sí­vel de cons­truir suas bor­das” (Mei­ra, 2003a, p. 85).

Em “Peque­nos brin­que­dos, jogos sem fim”, Mei­ra (2003b) faz pon­tuações sobre o exces­si­vo olhar dos pais dian­te das brin­ca­dei­ras das cria­nças, com o dis­cur­so de que “não é segu­ro dei­xá-las sozinhas”, o que faz com o que o brin­car na con­tem­po­ra­nei­da­de seja mar­ca­do pela angús­tia das cria­nças, pois é jus­ta­men­te quan­do estão sozinhas que podem dis­por das repe­tições, ela afir­ma que o “olhar do Outro inva­de a cena do brin­car da cria­nça de tal for­ma que a ela res­ta aban­do­nar o jogo e bus­car algo em torno do qual seus pais des­viem o olhar, para ali ins­ta­lar seu jogo meta­fó­ri­co” (Mei­ra, 2003b, p. 47).

Encon­tra­mos tam­bém Tizu­ko Mor­chi­da Kishi­mo­to, peda­go­ga, dou­to­ra em Edu­cação (USP), coor­de­na­do­ra do Labo­ra­tó­rio de Brin­que­dos e Mate­riais Peda­gó­gi­cos e do Museu da Edu­cação e do Brin­que­do. Kishi­mo­to (1994) reúne uma série de auto­res que pen­sa­ram sobre o lúdi­co, numa ten­ta­ti­va de con­cei­tuar o que é jogo, brin­que­do e brin­ca­dei­ra e como estes foram vis­tos e tra­ta­dos ao lon­go da his­tó­ria. Ao fazer inúme­ros ques­tio­na­men­tos, a auto­ra per­ce­be que uma mes­ma con­du­ta pode ou não ser jogo, o que vai loca­li­zar é a cul­tu­ra e o sign­fi­ca­do que atri­buem a essa con­du­ta, por isso, para ela, é difí­cil ela­bo­rar uma defi­nição de jogo que englo­be a mul­ti­pli­ci­da­de de suas mani­fes­tações. A auto­ra argu­men­ta que é impor­tan­te con­si­de­rar que o jogo tem um sen­ti­do den­tro de um con­tex­to, para ela, toda deno­mi­nação pres­su­põe um qua­dro sócio-cul­tu­ral trans­mi­ti­do pela lin­gua­gem e apli­ca­do ao real, ou seja, “enquan­to fato social, o jogo assu­me a ima­gem, o sen­ti­do que cada socie­da­de lhe atri­bui” (Kishi­mo­to, 1994, p.107–108).

A auto­ra expli­ca que é impor­tan­te dife­rir brin­que­dos de jogo. Para ela, o brin­que­do supõe uma relação com a cria­nça, sem regras para a cria­nça que orga­ni­za e deci­de seu uso, e tam­bém é atra­vés do obje­to brin­que­do que se faz uma pon­te com a reali­da­de. O brin­que­do ain­da por­ta uma dimen­são mate­rial, cul­tu­ral e téc­ni­ca, e é sem­pre supor­te de brin­ca­dei­ra. Kishi­mo­to (1994) defen­de que é o brin­que­do que vai fazer fluir o ima­gi­ná­rio infan­til, “pode-se dizer que um dos obje­ti­vos do brin­que­do é dar à cria­nça um subs­ti­tu­to dos obje­tos reais, para que pos­sa mani­pu­lá-los” (p. 109).

A brin­ca­dei­ra ganha outro sen­ti­do para a auto­ra, que assi­na­la ser a brin­ca­dei­ra a ação que a cria­nça des­em­penha ao con­cre­ti­zar as regras do jogo, mer­gulhan­do na ação lúdi­ca, “é o lúdi­co em ação”, assim, brin­que­do e brin­ca­dei­ra dire­cio­nam-se dire­ta­men­te com a cria­nça e não se con­fun­dem com o jogo. Como uma edu­ca­do­ra, ela pro­ble­ma­ti­za a ques­tão do uso das brin­ca­dei­ras e brin­que­dos como uma estra­té­gia peda­gó­gi­ca, pois, se a ação de brin­car é livre e espon­tâ­nea, ela per­de essa carac­te­rís­ti­ca ao ser dire­cio­na­da com obje­ti­vos pré­vios para a apren­di­za­gem, assim como o brin­que­do, que dei­xa de ser brin­que­do para ser um supor­te ou mate­rial de apoio como recur­so de apren­di­za­gem. Entre­tan­to, a auto­ra defen­de a ludi­ci­da­de como ele­men­to da edu­cação peda­gó­gi­ca.

Kishi­mo­to (1996) ain­da pro­ble­ma­ti­za em seu tex­to a ques­tão da brin­ca­dei­ra tra­di­cio­nal infan­til como vin­cu­la­da ao fol­clo­re, par­te da men­ta­li­da­de popu­lar que é trans­mi­ti­da pela lin­gua­gem. Vis­ta como par­te da cul­tu­ra popu­lar, essa moda­li­da­de de brin­ca­dei­ra pode ser con­si­de­ra­da uma pro­dução de um perío­do his­tó­ri­co, como algo que não faz par­te de uma cul­tu­ra ou his­tó­ria ofi­cial, jus­ta­men­te pela for­ma de trans­mis­são oral, não fica regis­tra­da, está sem­pre em trans­for­mação pela for­ma que as gerações vão incor­po­ran­do essas brin­ca­dei­ras.

Ain­da no cená­rio bra­si­lei­ro, loca­li­za­mos tam­bém Julie­ta Jeru­sa­linsk, psi­có­lo­ga, psi­ca­na­lis­ta, nes­te arti­go uti­li­za­mos recor­tes de sua tese de dou­to­ra­do: “A criação da cria­nça: letra e gozo nos pri­mór­dios do psi­quis­mo” (2009).  Para a auto­ra que segue uma orien­tação laca­nia­na, “o brin­car é sin­to­ma cons­ti­tuin­te do sujei­to na infân­cia (…) isso não tira a serie­da­de do brin­car, na medi­da em que, a cria­nça liga, ela­bo­ra, faz série sin­gu­lar dos acon­te­ci­men­tos de sua vida” (p. 195).  Ela bus­ca uma pers­pec­ti­va da cria­nça que se encon­tra com o brin­car, uma pers­pec­ti­va do vir-a-ser da cria­nça enquan­to sujei­to em devir e do brin­car uma ficção do pode­rá vir a ser, refo­rçan­do os aspec­tos do brin­car como pos­si­bi­li­da­des aber­tas, do cam­po das incer­te­zas e não-garan­tias. A auto­ra tam­bém apre­sen­ta uma pers­pec­ti­va da impor­tân­cia do brin­car para a cons­ti­tuição psí­qui­ca: “Brin­car, por­tan­to, não é sim­ples­men­te cha­ra­fun­dar sem direção no gozo da infân­cia. Brin­car é o pró­prio tra­balho de cons­ti­tuição do sujei­to na infân­cia” (p.199).

Jeru­sa­linsk (2009) ain­da con­tri­bui com a prá­ti­ca clí­ni­ca que uti­li­za o brin­car como recur­so lúdi­co, pois, ela lem­bra que a cria­nça não tem como obje­ti­vo mos­trar sua brin­ca­dei­ra aos adul­tos. Em geral, a cria­nça nem sem­pre bus­ca um espec­ta­dor, no entan­to, segun­do a auto­ra, nem sem­pre o brin­car é ocul­ta­do e o(a) psicólogo(a) tem de tra­balhar para que o brin­car se des­en­ro­le na cena clí­ni­ca, não atuan­do ape­nas como obser­va­dor externo, o que tam­bém não sig­ni­fi­ca que o(a) pro­fis­sio­nal tenha uma função de enca­beçar o brin­car, como vere­mos adian­te. Assim, ela des­ta­ca sobre a impli­cação do pro­fis­sio­nal para brin­car com con­teú­dos que podem ser “insu­por­tá­veis para os pais e que, inclu­si­ve, tan­gem temas proibi­dos pela edu­cação fami­liar ou esco­lar” (Jeru­sa­linsk, 2009, p. 201).

Práticas psicológicas com a brincadeira

“Terri­tó­rio do brin­car: um encon­tro com a cria­nça bra­si­lei­ra” (2015) é um pro­je­to de pes­qui­sa que tam­bém dá títu­lo a um docu­men­tá­rio e blog. O docu­men­tá­rio é idea­li­za­do por Rena­ta Mei­re­lles e Davi Reeks que per­co­rre­ram o Bra­sil visi­tan­do várias comu­ni­da­des rurais, indí­ge­nas, qui­lom­bo­las, gran­des metró­po­les, ser­tão e lito­ral. O docu­men­tá­rio regis­tra a des­igual­da­de social, racial e eco­nô­mi­ca no Bra­sil atra­vés da diver­si­da­de das cria­nças bra­si­lei­ras e suas brin­ca­dei­ras. Nas ima­gens fica evi­den­te que em con­tra­par­ti­da aos dis­cur­sos que afir­mam que “cria­nças não brin­cam mais”, de fato elas brin­cam e brin­cam mui­to. Tam­bém é des­ta­ca­da a plu­ra­li­da­de das cria­nças bra­si­lei­ras, em dife­ren­tes regiões, mas que se apro­priam do brin­car e o fazem con­for­me suas pos­si­bi­li­da­des, como é o caso das brin­ca­dei­ras de casinha e de pete­ca que são regis­tra­das no docu­men­tá­rio.

Como vemos, as cria­nças encon­tram for­mas de brin­car e ela­bo­ram diver­sas ati­vi­da­des em for­ma de brin­ca­dei­ras e a par­tir das con­dições que viven­ciam. Enten­de­mos que esta situação demons­tra como as cria­nças bus­cam e neces­si­tam des­sa ati­vi­da­de, sen­do atra­vés do brin­car que esta­be­le­cem con­ta­to com a reali­da­de e expe­ri­men­tam moda­li­da­des para lidar com ela. A expe­riên­cia com o brin­car pos­si­bi­li­ta que a cria­nça expres­se seus sen­ti­men­tos e con­si­ga tra­balhar com a reali­da­de e com o outro a par­tir des­sa mediação. Assim, ela exer­ci­ta sua ima­gi­nação e a tes­ta colo­can­do em ação suas lei­tu­ras sobre o mun­do e o outro, o que for­ta­le­ce e orga­ni­za sua sub­je­ti­vi­da­de.

É impor­tan­te pro­ble­ma­ti­zar ain­da o lugar que o brin­car ocu­pa na prá­ti­ca psi­co­ló­gi­ca, pois veja­mos bem, se após as lei­tu­ras dos auto­res aci­ma, per­ce­be­mos que o brin­car é uma for­ma de comu­ni­cação da cria­nça, o brin­car no tra­balho psi­co­ló­gi­co deve ser orien­ta­do? Qual lugar o brin­car ocu­pa no set­ting tera­pêu­ti­co? É inter­es­san­te pen­sar que se o brin­car é vis­to pela Psi­co­lo­gia como uma for­ma de comu­ni­cação e expres­são da cria­nça, então é impor­tan­te que ela brin­que como qui­ser, e se tam­bém con­cor­da­mos com auto­res como Brou­gè­re e Kishi­mo­to que con­si­de­ram o brin­car uma ati­vi­da­de espon­tâ­nea onde não se pode pre­ver os resul­ta­dos, ati­vi­da­de que esca­pa e que não pode ser deli­mi­ta­da, então per­gun­ta­mos qual a fina­li­da­de da(o) psicóloga(o) ‘enca­beçar’ o brin­car na prá­ti­ca psi­co­ló­gi­ca? Escolher o brin­car com uma cria­nça pode­ria ser equi­va­len­te ao escolher o que um adul­to deve falar num pro­ces­so tera­pêu­ti­co.

Em outras pala­vras, a prá­ti­ca do pro­fis­sio­nal da Psi­co­lo­gia dian­te do brin­car deve ser de per­mi­tir uma ati­vi­da­de livre e espon­tâ­nea, sem que o desejo pelos resul­ta­dos sobre­ponha aos desejos da cria­nça. Se o pro­fis­sio­nal escolhe, orien­ta e dire­cio­na o brin­car, é como se silen­cias­se as pos­si­bi­li­da­des de emer­gir as escolhas da cria­nça (que deve ser a pro­ta­go­nis­ta). Ain­da essa for­ma de tra­balho e de olhar a brin­ca­dei­ra suge­re que o adul­to-pro­fis­sio­nal pres­su­põe o que pode ser melhor para a cria­nça, ou ain­da pres­su­põe um bene­fí­cio ime­dia­to, como se ao brin­car de deter­mi­na­da for­ma, um tal resul­ta­do garan­ti­do fos­se sur­gir. Essa é uma prá­ti­ca que corres­pon­de aos pres­su­pos­tos da moder­ni­da­de. Então, o que pode um(a) psicólogo(a) fren­te a cria­nça? Seria uma pos­si­bi­li­da­de mais inter­es­san­te para os que tra­balham com a brin­ca­dei­ra, que a per­ce­bem como um meio e não como um pro­du­to com resul­ta­do final, pois como já nos aler­tou Brou­gè­re (2010, p. 65) “o brin­car não se pres­ta a nenhum resul­ta­do além do pra­zer (…) brin­car pres­su­põe liber­da­de”.

A ati­vi­da­de de brin­car enquan­to meio, téc­ni­ca, arti­fí­cio ou ferra­men­ta do tra­balho de psicólogos(as), deve ter uma con­ce­pção de cria­nça enten­di­da como um sujei­to em cons­ti­tuição. Ou seja, se é tam­bém atra­vés da brin­ca­dei­ra que pen­sa­mos em cons­ti­tuição sub­je­ti­va, então temos de pen­sar nela como uma for­ma sin­gu­lar da cria­nça expres­sar sen­ti­men­tos, emoções, apro­priar-se dos con­teú­dos dis­po­ní­veis no laço social, sen­do então que o brin­car tem a potên­cia de des­lo­ca­men­tos, trans­for­mações, inve­nções, fan­ta­sias e ima­gi­nações. Enquan­to psicológos(as) damos às cria­nças as pos­si­bi­li­da­des de virem-a-ser o que se puder ser, dei­xar emer­gir atra­vés do brin­car é a rique­za do tra­balho tera­pêu­ti­co com cria­nças.

A par­tir daí, depois do brin­car ser escu­ta­do e acolhi­do, é que a(o) psicóloga(o) pode se auto­ri­zar a entrar na cena da brin­ca­dei­ra com a cria­nça. É nes­se momen­to que a cria­nça em sofri­men­to pode se sen­tir per­mi­ti­da a con­ti­nuar brin­can­do, sem jul­ga­men­tos, sem inter­dições (exce­to quan­do brin­ca de for­ma peri­go­sa que pos­sa se colo­car em ris­co ou colo­car a(o) pro­fis­sio­nal em ris­co). É tam­bém nes­se momen­to que ela pro­duz des­lo­ca­men­tos sub­je­ti­vos capa­zes de ‘ali­viar’ a sua angús­tia.

Algumas considerações finais

O brin­car atual­men­te é vis­to como algo neces­sá­rio, é um direi­to das cria­nças, tan­to que se come­mo­ra no dia 28 de maio o “Dia do Brin­car” em mais de 40 paí­ses. Porém, vemos que essa valo­ri­zação do brin­car é um movi­men­to que pare­ce ser impor­tan­te ape­nas para pro­fis­sio­nais que tra­balham com o públi­co infan­til, sen­do que na pers­pec­ti­va geral da socie­da­de essa ati­vi­da­de con­ti­nua a ser con­si­de­ra­da como opos­ta às ações sérias e pro­du­ti­vas.

A brin­ca­dei­ra pos­sui uma base na reali­da­de, no sen­ti­do de que a cria­nça vai usar os recur­sos do mun­do que estão dis­po­ní­veis para ela, para apli­car em suas brin­ca­dei­ras (por exem­plo quan­do brin­cam de “mamãe e filhinho” ou “esco­linha”). Con­si­de­ra­mos que exis­te pra­zer na fan­ta­sia da cria­nça, pois ela faz a pon­te entre a reali­da­de e a ima­gi­nação, sen­do que o pra­zer está con­ti­do em poder osci­lar nos papéis que inter­pre­ta, que podem variar a par­tir da ima­gi­nação (pro­fes­so­ra, mãe, astro­nau­ta etc.). É nes­te sen­ti­do que a brin­ca­dei­ra fun­cio­na como ati­vi­da­de que cons­trói a relação entre a reali­da­de e o mun­do sim­bó­li­co e cog­ni­ti­vo que orga­ni­za a sub­je­ti­vi­da­de infan­til.

Con­si­de­ran­do esse aspec­to da prá­ti­ca psi­co­ló­gi­ca, pode­mos enten­der que a pro­dução de conhe­ci­men­to sobre a brin­ca­dei­ra aumen­ta as pos­si­bi­li­da­des para o tra­balho do psi­có­lo­go sen­do fun­da­men­tal para ampliar a qua­li­da­de do aten­di­men­to ofe­re­ci­do por esse pro­fis­sio­nal.

A pro­pos­ta é que a atuação de psicólogas(os) que tra­balham atra­vés e com o brin­car con­si­de­re este um cam­po de estu­do mul­ti­dis­ci­pli­nar, pos­si­bi­li­tan­do um brin­car his­to­ri­ci­za­do, pro­dução e pro­du­tor da cul­tu­ra, uma pers­pec­ti­va que con­si­de­re a brin­ca­dei­ra com todas as suas com­ple­xi­da­des. Que a atuação de psicólogas(os) bus­que o enfren­ta­men­to dos aspec­tos que des­qua­li­fi­cam a ati­vi­da­de do brin­car, mos­tran­do que essa é uma ati­vi­da­de impor­tan­te, legí­ti­ma e neces­sá­ria à cons­ti­tuição sub­je­ti­va das cria­nças.

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Notas

  1. Psi­có­lo­ga, Uni­ver­si­da­de Fede­ral de San­ta Cata­ri­na- UFSC. E‑mail: laurapsico95@gmail.com 
  2. Pro­fes­so­ra e pes­qui­sa­do­ra no Pro­gra­ma de Pós-Gra­duação em Psi­co­lo­gia na Uni­ver­si­da­de Fede­ral de San­ta Cata­ri­na, Florianópolis/SC, Bra­sil. E‑mail:meritisouza@yahoo.com.br
  3. Pro­fes­sor do cur­so de Psi­co­lo­gia no Cen­tro Uni­ver­si­tá­rio de Brus­que – UNIFEBE. E‑mail:gustavooangeli@gmail.com