A importância do brincar na prática psicológica no Brasil: algumas análises
Laura Christofoletti da Silva Gabriel[1], Mériti de Souza[2], Gustavo Angeli[3]
Resumo
O brincar ocupa lugar fundamental na constituição subjetiva e na construção da relação da criança com o mundo. Entretanto, na cultura contemporânea disseminou-se a concepção que desqualifica a brincadeira e a opõe às atividades consideradas eficientes e produtivas. Nosso objetivo é apresentar referências teóricas que qualificam a brincadeira e afirmam a sua importância para a organização do sujeito e para o desenvolvimento infantil. Realizamos uma pesquisa qualitativa teórica na qual foram selecionadas obras de autores de diversas abordagens que analisam as relações entre a atividade do brincar e o sujeito. Ato contínuo, também selecionamos obras de autores brasileiros que analisam a temática da prática psicológica utilizando a brincadeira. Concluímos pela importância do reconhecimento dessa atividade para a organização subjetiva e pela necessidade da sua afirmação no trabalho psicológico.
Palavras-chave: Subjetividade; Brincar; Prática Psicológica; Brasil.
Resumen
Jugar ocupa un lugar fundamental en la constitución y construcción subjetiva de la relación del niño con el mundo. Sin embargo, en la cultura contemporánea se ha difundido una concepción que descalifica el juego y lo contrapone a las actividades consideradas como eficientes y productivas. Nuestro objetivo es presentar referentes teóricos que cualifiquen el juego y afirmen su importancia para la organización del sujeto y para el desarrollo infantil. Realizamos una investigación cualitativa teórica en la que se seleccionaron trabajos de autores de diferentes enfoques que analizan las relaciones entre la actividad de jugar y el sujeto. Después, fueron seleccionadas obras de autores brasileños que analizan el tema de la práctica psicológica a través del juego. Concluimos la gran importancia del reconocimiento de esta actividad para la organización subjetiva y la necesidad de su afirmación en el trabajo psicológico.
Palabras clave: subjetividad; jugar; práctica psicológica; Brasil.
Introdução
Pensamos na brincadeira como um elemento importante para a constituição da subjetividade e do conhecimento, mesmo que para os pressupostos hegemônicos da modernidade a brincadeira seja um elemento recalcado e desqualificado como forma de conhecer e de subjetivar. Necessário ressaltar que pesquisadoras(es) das mais variadas e diferenciadas matrizes teóricas afirmam a importância do brincar no trabalho de elaboração psíquica e na organização da cultura geral e da manutenção da cultura lúdica. Entretanto, consideramos que ainda permanece nas teorias hegemônicas sobre a subjetividade a leitura sobre o brincar como uma atividade dispensável. Existe uma concepção disseminada na cultura que opõe a atividade do brincar às atividades consideradas sérias e produtivas, na medida em que estas últimas apresentariam resultados, ou seja, produtos imediatos, úteis e concretos.
Acreditamos que a desqualificação da brincadeira presente nos discursos hegemônicos que dominam o modo de subjetivar e o modo de conhecer na sociedade ocidental esteja associada aos pressupostos que acompanham a atividade do brincar. Ou seja, o modelo hegemônico sobre a constituição subjetiva que elegeu o sujeito cognoscente com a subjetividade restrita à consciência e sobre o modo de conhecer restrito à razão, desqualifica e exclui outras modalidades e teorias que extrapolam essas concepções, o que inclui a desqualificação da brincadeira, das artes, da literatura, dentre outras. Assim, os pressupostos da modernidade ligados à substância, a lógica formal, a identidade, não contradição, continuidade, dentre outros, são valorizados e acompanham as teorias dominantes configurando relações de poder (Chauí, 1996; Foucault, 2012).
Dessa forma, as atividades que envolvem esses pressupostos são consideradas produtivas e direcionadas ao desenvolvimento do humano e da sociedade, ao passo que atividades que envolvem pressupostos como, por exemplo, negativo, devir, descontínuo, inconsciente, indecidível, são consideradas comprometedoras do desenvolvimento da subjetividade e do conhecimento (Foucault, 2012). No caso específico do brincar, entendemos que essa atividade é desqualificada, pois, não produz um resultado imediato e visível no sentido de um produto final e útil, bem como, pelo fato dela explicitar o funcionamento do devir, do vir a ser, do descontínuo, do acaso, do indecidível.
Considerando estes aspectos, nos interessa neste artigo qualificar a brincadeira e apontar sua importância na constituição subjetiva, bem como, sua necessidade para o desenvolvimento da criança e para o trabalho de profissionais da Psicologia. De forma específica, objetivamos problematizar a prática do brincar considerando sua potencialidade para a constituição subjetiva a partir da análise do trabalho de autores(as) de diferentes áreas do conhecimento, bem como, corroborar o reconhecimento da importância do brincar na constituição subjetiva e na prática psicológica, a partir do trabalho de psicólogos(as) brasileiros.
Para a efetivação dos objetivos propostos realizamos uma pesquisa qualitativa e teórica sendo que os materiais de estudo, ou seja, os(as) autores(as) e os textos, foram selecionados considerando o seu reconhecimento acerca do brincar e da constituição subjetiva. Assim, realizamos uma revisão bibliográfica considerando a qualidade dos(as) autores(as) e das obras selecionadas e seu potencial para produzir conhecimento sobre o tema investigado a partir de materiais publicados (Gerhardt & Silveira, 2009). A partir da leitura inicial desses materiais selecionados, foram realizados fichamentos de leitura e criados roteiros temáticos que permitiram sistematizar seus conteúdos e organizar a análise. Ainda, para a análise foram considerados o eixo temático abordado sobre a brincadeira e a constituição subjetiva.
A partir dessa perspectiva, apresentamos algumas das teorias de diversas(os) pesquisadoras(es), que mesmo sendo de áreas de conhecimento diferentes (psicanálise, história, pedagogia, psicologia, sociologia) e com concepções de sujeita(o) diferentes, valorizam a importância do brincar e sua relação com a subjetividade. Localizamos autoras(es) clássicas(os) e indispensáveis como Walter Benjamin (2002;1994), Johan Huizinga (1971), Gilles Brougère (2010), Lev Vygotsky (1984), Donald Winnicott (1975), Françoise Dolto (2007), que partem de abordagens teóricas diferentes, mas que constroem elaboradas teorias sobre a relação entre a brincadeira, o brinquedo e a constituição subjetiva. Ainda localizamos no cenário brasileiro autores(as) como Tizuko Morchida Kishimoto (1994; 1996), Ana Marta Meira (2003a; 2003b) e Julieta Jerusalinsk (2009), que problematizam a relação da brincadeira e do brincar com a produção da cultura local, bem como, trabalham na prática psicológica recorrendo às brincadeiras.
A brincadeira eo jogo na história ocidental: Algumas leituras
Walter Benjamin (2002), filósofo e sociólogo alemão, escreve sobre a história cultural do brinquedo, e conta que no início os brinquedos não foram invenções de fabricantes especializados, mas surgiram nas oficinas de entalhadores, marceneiros, fundidores de estanho, etc. O autor explica que o estilo e a beleza das peças mais antigas se davam por ser o brinquedo um produto secundário das oficinas manufatureiras, que só podiam fabricar o que competia ao seu ramo. Entretanto, ao longo do século XVIII, começa o burburinho de uma produção especializada, que fez com que o mesmo brinquedo com materiais diferentes passasse por várias mãos, encarecendo os custos. O autor também nos conta que muitos artistas que produziam obras grandes para as Igrejas, necessitaram reorientar seu trabalho após a Reforma, e começaram a produzir objetos artesanais para a decoração doméstica, e foi assim que se deu a difusão dos objetos minúsculos que faziam a alegria das crianças nas estantes de casa.
Quando se fala nos brinquedos, para Benjamin (1994) é importante que se lembre não apenas das crianças, mas dos adultos que os produzem, pois ao imaginar as bonecas de bétula ou de palha e os navios de estanho, os adultos estariam interpretando a seu modo a sensibilidade infantil. Ele completa dizendo que as crianças não são uma comunidade isolada, mas fazem parte do povo e da classe a que pertencem, logo, os seus brinquedos são um mudo diálogo de sinais entre a criança e o seu povo.
O autor afirma que, anteriormente, acreditava-se que a brincadeira era determinada pelo conteúdo imaginário do brinquedo, quando na verdade, a ideia é contrária a esta suposição. Ele propõe que o que rege a totalidade do mundo dos jogos é a lei da repetição, pois nada faz uma criança mais feliz do que o “mais uma vez”. Benjamin (1994) pensa que a “obscura compulsão por repetição não é no jogo menos poderosa, toda experiência deseja insaciavelmente até o final de todas as coisas, repetição e retorno” (p. 101). Ainda, Benjamin (2002) diz que a essência do brincar não é “fazer como se”, mas um “fazer sempre de novo”, transformando a experiência em hábito. Ou seja, é através do jogo que os hábitos são instalados, portanto, segundo o autor, se fizermos com que a criança entenda que comer, dormir e se vestir são atividades lúdicas, logo isto seria um hábito através da brincadeira.
Johan Huizinga (1971) historiador e linguista holandês, produziu muito conteúdo a respeito do jogo na cultura, já que para ele a cultura é um jogo no sentido de que surge no próprio jogo. Ele pontua que encontramos o jogo como um elemento dado existente antes da própria cultura, que acompanha e marca desde as mais distantes origens até a civilização em que agora nos encontramos. O autor afirma que o jogo é uma função da vida que não é passível de definição exata em termos lógicos, biológicos ou estéticos, sendo o jogo “uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido” (p.04).
O autor entende que quanto mais nos esforçamos para estabelecer uma separação entre o que nominamos “jogo” e outras formas relacionadas a ele, mais evidenciamos a absoluta independência do conceito de jogo, ou seja, sua exclusão do domínio das grandes oposições entre categorias não se detém aí, ele explica que jogo não é compreendido pela antítese entre sabedoria e loucura, etc., e que embora seja uma atividade não material, não desempenha uma função moral.
O autor descreve ainda características fundamentais da atividade do jogo: liberdade; evasão da vida real; isolamento e limitação; ordem e tensão. A liberdade refere-se ao fato dessa atividade ser livre, considerando a evasão da vida real como a capacidade de absorção do jogador, ou seja, toda criança sabe quando está “só fazendo de conta”. O isolamento e a limitação dizem respeito a como o jogo distingue-se da vida “comum”, tanto pelo lugar, como pela duração que ocupa, “jogado até o fim” dentro de certos limites de tempo e espaço. Nesse caso temos a criação de uma ordem suprema, pois, uma desobediência estraga o andamento dessa atividade. E a tensão, seria a incerteza, o acaso. É o elemento da tensão que torna o jogo apaixonante e esta tensão chega ao extremo nos jogos de azar e competições esportivas
Sobre a brincadeira, Brougère (2010) também destaca alguns pontos que vão ao encontro de outras(os) autoras(es) apresentados neste trabalho, para ele, a brincadeira é uma forma da criança viver a cultura que a cerca, assim como, é atividade que parece não buscar nenhum resultado além do prazer. Ele também ressalta que é uma atividade que permite à criança a apropriação dos códigos culturais e tem papel na socialização e, por fim, destaca que é um meio da criança escapar da vida limitante e se lançar num universo alternativo excitante.
No livro “O brincar e a realidade”, o pediatra e psicanalista inglês, Donald Winnicott (1975) defende que a brincadeira é universal e saudável, um elemento facilitador do crescimento, algo que conduz a relacionamentos grupais e por fim, é uma forma de comunicação na psicoterapia com crianças.
Em sua ‘teoria da brincadeira’, Winnicott (1975), descreve uma sequência de relacionamentos sobre o processo de desenvolvimento do brincar. No primeiro estádio, o bebê e o objeto estariam fundidos um no outro e a mãe orientar-se-ia no sentido para tornar concreto o que o bebê estaria pronto para encontrar. No segundo estádio, o objeto seria inicialmente repudiado, aceito de novo e objetivamente percebido, assim, a mãe estaria permanentemente oscilando entre ser o que o bebê tem capacidade de encontrar e ser ela própria. Neste estádio, o autor completa que “a importância do brincar é sempre a precariedade do interjogo entre a realidade psíquica pessoal e a experiência de controle de objetos reais” (Winnicott, 1975, p.71). O terceiro estádio é a capacidade da criança em ficar (brincar) sozinho na presença de alguém. O quarto e último estádio seria o momento que a criança permite fruir uma superposição de duas áreas de brincadeira, ou seja, a mãe ao brincar com o bebê primeiro ajusta-se às suas atividades lúdicas para depois introduzir o seu brincar (que o bebê pode aceitar ou não), assim, estaria aberto o caminho para um brincar conjunto num relacionamento.
De uma forma geral, Winnicott (1975), pontua que o brincar é uma experiência, “sempre uma experiência criativa, uma experiência na continuidade espaço-tempo, uma forma básica de viver” (p. 75) e que “é no brincar e, talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem sua liberdade de criação (…), podendo ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self)” (p. 79).
Lev Vygotsky (1984), psicólogo e pensador que articulou a Psicologia Histórico-Cultural, pensa que a atividade do brinquedo não pode ser considerada apenas como prazerosa, pois muitas outras atividades podem ser mais prazerosas, como por exemplo, chupar chupeta, e alguns jogos só dão prazer à criança se ela considerar o resultado interessante. Ao propor critérios para diferenciar o brincar da criança de outras formas de atividade, ele conclui que no brinquedo a criança cria uma situação imaginária. Assim, um brinquedo que envolve uma situação imaginária é um brinquedo baseado em regras, e não existe brinquedo sem regras, “a situação imaginária de qualquer forma de brinquedo já contém regras formais estabelecidas a priori” (Vygotsky, 1984, p. 108). O autor é bem enfático ao dizer que “toda situação imaginária contém regras de uma forma oculta e também todo jogo com regras contém de forma oculta, uma situação imaginária” (Vygotsky, 1984, p.108).
Vygotsky (1984) acredita que é enorme a influência do brinquedo no desenvolvimento de uma criança, pois é no brinquedo que a criança aprende a agir na esfera cognitiva. Mesmo que ele pontue sobre as regras na brincadeira, também compreende que no brinquedo os objetos perdem sua força determinadora, pois, quando a criança vê um objeto, ela age diferente em relação àquilo que vê.
Dois paradoxos estariam contidos no brinquedo, segundo Vygotsky (1984). O primeiro, é que a criança opera com um significado alienado numa situação real, e o segundo é que, no brinquedo a criança segue o caminho de menor esforço. A criança brinca do que mais gosta, porque o prazer está aliado ao brinquedo, mas concomitantemente, precisa seguir o caminho mais difícil, pois o que constitui o caminho para o prazer no brinquedo é assujeitar-se às regras e renunciar ao que quer e às ações impulsivas.
Na obra ‘Etapas decisivas da infância”, Françoise Dolto (2007), pediatra e psicanalista francesa, descreve o brincar como uma busca pelo prazer e, ao longo do texto, ela articula os meses e idades de vida das crianças com os jogos e brincadeiras que mais lhe interessam, além de descrever a importância de tais jogos nesses momentos. Para ela, uma criança saudável é aquela que “se diverte, que se ocupa com qualquer coisa e explora tudo que está ao seu alcance” (Dolto, 2007, p. 110), portanto, para ela, “privar uma criança de brincar, significa privá-la do prazer de viver” (Dolto, 2007, p. 110).
Em jogos compartilhados, todo jogo é mediador de desejo, trazendo consigo uma satisfação e permitindo expressar seu desejo aos outros, tanto para as crianças quanto para os adultos (Dolto, 2007). A autora ainda pontua que no brincar, existe um prazer de contornar as regras, seja nas brincadeiras em grupo, ou nas regras que a criança impõe a si mesma, existe o prazer em trapacear.
A autora finaliza o capítulo ‘A criança e o jogo’, pontuando a importância das crianças variarem os brinquedos em que experimentam a sensorialidade e a inteligência, para ela um jogo que não tem o elemento surpresa, que não questiona mais é inútil e estorva a criança. A importância da troca de brinquedos é fazer com que a criança seja inventiva, criativa, descobrir os materiais que constituem cada brinquedo e iniciar-se no prazer e limites que cada brinquedo possui. Segundo Dolto (2007, p.118), “brincar é aprender a ser, é aprender a viver tanto sozinho, quanto com os outros trocando brinquedos”, exceto aqueles que são objetos transicionais e devem ser protegidos pela criança.
O brincar em diferentes abordagens teóricas no Brasil
Trazendo agora o debate para o cenário contemporâneo brasileiro localizamos Ana Marta Meira, psicóloga, psicanalista e doutora em educação. Meira (2003a), faz suas análises a partir de leituras da psicanálise e à luz de Walter Benjamin, criando uma intersecção entre a história do brinquedo e do brincar com os elementos destes na atualidade. Para a autora, na atualidade a produção massiva e capitalista dos brinquedos plastificados confere ao sujeito um lugar onde o singular encontra-se fragmentado na multiplicidade que o regem, assim, os brinquedos evocam as formações do social, “são objetos que revelam em sua configuração os traços da cultura em que se inscrevem” (Meira, 2003a, p. 75).
A autora pontua que para as crianças suspenderem o tempo e brincar, é hoje um ato de extremo desafio contra os aparelhos virtuais. Os pais oferecem às crianças os objetos que lhes são mostrados virtualmente, em uma dimensão de excesso, para os pais é como a dimensão de brincar com o que falta, onde o objeto encontra-se subtraído. Meira (2003a) relembra que Benjamin (2002) discute a transformação do brinquedo como efeito da industrialização, que vai marcar o distanciamento entre as crianças e seus pais que, antes, produziam juntos.
Algo extremamente importante que Meira (2003a) acentua em seu artigo, é a tentativa de diferenciar jogo e brincadeira. Para ela, os jogos estariam hoje, mais no sentido do virtual, ligado a video-games, enquanto as brincadeiras seriam o contato da criança com objetos, movimentação corporal e até contato com outras crianças. Para ela, poderíamos considerar “vídeo-games como sendo vias de passagem do brincar ao jogo” (Meira, 2003a, p. 84), entretanto os jogos virtuais têm prevalecido sobre o brincar com objetos ou brinquedos. Ela questiona quais os possíveis efeitos desta nova posição da criança, “que encontra-se enlaçada ao tecido social contemporâneo, onde a tecnologia é hegemônica e prevalece no brincar” (Meira, 2003a, p. 84). Por fim, a autora ilustra que o “brincar é tecido por histórias e a travessia pelos brinquedos feitos com arte, elaborados com as mãos das crianças e dos adultos que as cercam, representa uma via possível de construir suas bordas” (Meira, 2003a, p. 85).
Em “Pequenos brinquedos, jogos sem fim”, Meira (2003b) faz pontuações sobre o excessivo olhar dos pais diante das brincadeiras das crianças, com o discurso de que “não é seguro deixá-las sozinhas”, o que faz com o que o brincar na contemporaneidade seja marcado pela angústia das crianças, pois é justamente quando estão sozinhas que podem dispor das repetições, ela afirma que o “olhar do Outro invade a cena do brincar da criança de tal forma que a ela resta abandonar o jogo e buscar algo em torno do qual seus pais desviem o olhar, para ali instalar seu jogo metafórico” (Meira, 2003b, p. 47).
Encontramos também Tizuko Morchida Kishimoto, pedagoga, doutora em Educação (USP), coordenadora do Laboratório de Brinquedos e Materiais Pedagógicos e do Museu da Educação e do Brinquedo. Kishimoto (1994) reúne uma série de autores que pensaram sobre o lúdico, numa tentativa de conceituar o que é jogo, brinquedo e brincadeira e como estes foram vistos e tratados ao longo da história. Ao fazer inúmeros questionamentos, a autora percebe que uma mesma conduta pode ou não ser jogo, o que vai localizar é a cultura e o signficado que atribuem a essa conduta, por isso, para ela, é difícil elaborar uma definição de jogo que englobe a multiplicidade de suas manifestações. A autora argumenta que é importante considerar que o jogo tem um sentido dentro de um contexto, para ela, toda denominação pressupõe um quadro sócio-cultural transmitido pela linguagem e aplicado ao real, ou seja, “enquanto fato social, o jogo assume a imagem, o sentido que cada sociedade lhe atribui” (Kishimoto, 1994, p.107–108).
A autora explica que é importante diferir brinquedos de jogo. Para ela, o brinquedo supõe uma relação com a criança, sem regras para a criança que organiza e decide seu uso, e também é através do objeto brinquedo que se faz uma ponte com a realidade. O brinquedo ainda porta uma dimensão material, cultural e técnica, e é sempre suporte de brincadeira. Kishimoto (1994) defende que é o brinquedo que vai fazer fluir o imaginário infantil, “pode-se dizer que um dos objetivos do brinquedo é dar à criança um substituto dos objetos reais, para que possa manipulá-los” (p. 109).
A brincadeira ganha outro sentido para a autora, que assinala ser a brincadeira a ação que a criança desempenha ao concretizar as regras do jogo, mergulhando na ação lúdica, “é o lúdico em ação”, assim, brinquedo e brincadeira direcionam-se diretamente com a criança e não se confundem com o jogo. Como uma educadora, ela problematiza a questão do uso das brincadeiras e brinquedos como uma estratégia pedagógica, pois, se a ação de brincar é livre e espontânea, ela perde essa característica ao ser direcionada com objetivos prévios para a aprendizagem, assim como o brinquedo, que deixa de ser brinquedo para ser um suporte ou material de apoio como recurso de aprendizagem. Entretanto, a autora defende a ludicidade como elemento da educação pedagógica.
Kishimoto (1996) ainda problematiza em seu texto a questão da brincadeira tradicional infantil como vinculada ao folclore, parte da mentalidade popular que é transmitida pela linguagem. Vista como parte da cultura popular, essa modalidade de brincadeira pode ser considerada uma produção de um período histórico, como algo que não faz parte de uma cultura ou história oficial, justamente pela forma de transmissão oral, não fica registrada, está sempre em transformação pela forma que as gerações vão incorporando essas brincadeiras.
Ainda no cenário brasileiro, localizamos também Julieta Jerusalinsk, psicóloga, psicanalista, neste artigo utilizamos recortes de sua tese de doutorado: “A criação da criança: letra e gozo nos primórdios do psiquismo” (2009). Para a autora que segue uma orientação lacaniana, “o brincar é sintoma constituinte do sujeito na infância (…) isso não tira a seriedade do brincar, na medida em que, a criança liga, elabora, faz série singular dos acontecimentos de sua vida” (p. 195). Ela busca uma perspectiva da criança que se encontra com o brincar, uma perspectiva do vir-a-ser da criança enquanto sujeito em devir e do brincar uma ficção do poderá vir a ser, reforçando os aspectos do brincar como possibilidades abertas, do campo das incertezas e não-garantias. A autora também apresenta uma perspectiva da importância do brincar para a constituição psíquica: “Brincar, portanto, não é simplesmente charafundar sem direção no gozo da infância. Brincar é o próprio trabalho de constituição do sujeito na infância” (p.199).
Jerusalinsk (2009) ainda contribui com a prática clínica que utiliza o brincar como recurso lúdico, pois, ela lembra que a criança não tem como objetivo mostrar sua brincadeira aos adultos. Em geral, a criança nem sempre busca um espectador, no entanto, segundo a autora, nem sempre o brincar é ocultado e o(a) psicólogo(a) tem de trabalhar para que o brincar se desenrole na cena clínica, não atuando apenas como observador externo, o que também não significa que o(a) profissional tenha uma função de encabeçar o brincar, como veremos adiante. Assim, ela destaca sobre a implicação do profissional para brincar com conteúdos que podem ser “insuportáveis para os pais e que, inclusive, tangem temas proibidos pela educação familiar ou escolar” (Jerusalinsk, 2009, p. 201).
Práticas psicológicas com a brincadeira
“Território do brincar: um encontro com a criança brasileira” (2015) é um projeto de pesquisa que também dá título a um documentário e blog. O documentário é idealizado por Renata Meirelles e Davi Reeks que percorreram o Brasil visitando várias comunidades rurais, indígenas, quilombolas, grandes metrópoles, sertão e litoral. O documentário registra a desigualdade social, racial e econômica no Brasil através da diversidade das crianças brasileiras e suas brincadeiras. Nas imagens fica evidente que em contrapartida aos discursos que afirmam que “crianças não brincam mais”, de fato elas brincam e brincam muito. Também é destacada a pluralidade das crianças brasileiras, em diferentes regiões, mas que se apropriam do brincar e o fazem conforme suas possibilidades, como é o caso das brincadeiras de casinha e de peteca que são registradas no documentário.
Como vemos, as crianças encontram formas de brincar e elaboram diversas atividades em forma de brincadeiras e a partir das condições que vivenciam. Entendemos que esta situação demonstra como as crianças buscam e necessitam dessa atividade, sendo através do brincar que estabelecem contato com a realidade e experimentam modalidades para lidar com ela. A experiência com o brincar possibilita que a criança expresse seus sentimentos e consiga trabalhar com a realidade e com o outro a partir dessa mediação. Assim, ela exercita sua imaginação e a testa colocando em ação suas leituras sobre o mundo e o outro, o que fortalece e organiza sua subjetividade.
É importante problematizar ainda o lugar que o brincar ocupa na prática psicológica, pois vejamos bem, se após as leituras dos autores acima, percebemos que o brincar é uma forma de comunicação da criança, o brincar no trabalho psicológico deve ser orientado? Qual lugar o brincar ocupa no setting terapêutico? É interessante pensar que se o brincar é visto pela Psicologia como uma forma de comunicação e expressão da criança, então é importante que ela brinque como quiser, e se também concordamos com autores como Brougère e Kishimoto que consideram o brincar uma atividade espontânea onde não se pode prever os resultados, atividade que escapa e que não pode ser delimitada, então perguntamos qual a finalidade da(o) psicóloga(o) ‘encabeçar’ o brincar na prática psicológica? Escolher o brincar com uma criança poderia ser equivalente ao escolher o que um adulto deve falar num processo terapêutico.
Em outras palavras, a prática do profissional da Psicologia diante do brincar deve ser de permitir uma atividade livre e espontânea, sem que o desejo pelos resultados sobreponha aos desejos da criança. Se o profissional escolhe, orienta e direciona o brincar, é como se silenciasse as possibilidades de emergir as escolhas da criança (que deve ser a protagonista). Ainda essa forma de trabalho e de olhar a brincadeira sugere que o adulto-profissional pressupõe o que pode ser melhor para a criança, ou ainda pressupõe um benefício imediato, como se ao brincar de determinada forma, um tal resultado garantido fosse surgir. Essa é uma prática que corresponde aos pressupostos da modernidade. Então, o que pode um(a) psicólogo(a) frente a criança? Seria uma possibilidade mais interessante para os que trabalham com a brincadeira, que a percebem como um meio e não como um produto com resultado final, pois como já nos alertou Brougère (2010, p. 65) “o brincar não se presta a nenhum resultado além do prazer (…) brincar pressupõe liberdade”.
A atividade de brincar enquanto meio, técnica, artifício ou ferramenta do trabalho de psicólogos(as), deve ter uma concepção de criança entendida como um sujeito em constituição. Ou seja, se é também através da brincadeira que pensamos em constituição subjetiva, então temos de pensar nela como uma forma singular da criança expressar sentimentos, emoções, apropriar-se dos conteúdos disponíveis no laço social, sendo então que o brincar tem a potência de deslocamentos, transformações, invenções, fantasias e imaginações. Enquanto psicológos(as) damos às crianças as possibilidades de virem-a-ser o que se puder ser, deixar emergir através do brincar é a riqueza do trabalho terapêutico com crianças.
A partir daí, depois do brincar ser escutado e acolhido, é que a(o) psicóloga(o) pode se autorizar a entrar na cena da brincadeira com a criança. É nesse momento que a criança em sofrimento pode se sentir permitida a continuar brincando, sem julgamentos, sem interdições (exceto quando brinca de forma perigosa que possa se colocar em risco ou colocar a(o) profissional em risco). É também nesse momento que ela produz deslocamentos subjetivos capazes de ‘aliviar’ a sua angústia.
Algumas considerações finais
O brincar atualmente é visto como algo necessário, é um direito das crianças, tanto que se comemora no dia 28 de maio o “Dia do Brincar” em mais de 40 países. Porém, vemos que essa valorização do brincar é um movimento que parece ser importante apenas para profissionais que trabalham com o público infantil, sendo que na perspectiva geral da sociedade essa atividade continua a ser considerada como oposta às ações sérias e produtivas.
A brincadeira possui uma base na realidade, no sentido de que a criança vai usar os recursos do mundo que estão disponíveis para ela, para aplicar em suas brincadeiras (por exemplo quando brincam de “mamãe e filhinho” ou “escolinha”). Consideramos que existe prazer na fantasia da criança, pois ela faz a ponte entre a realidade e a imaginação, sendo que o prazer está contido em poder oscilar nos papéis que interpreta, que podem variar a partir da imaginação (professora, mãe, astronauta etc.). É neste sentido que a brincadeira funciona como atividade que constrói a relação entre a realidade e o mundo simbólico e cognitivo que organiza a subjetividade infantil.
Considerando esse aspecto da prática psicológica, podemos entender que a produção de conhecimento sobre a brincadeira aumenta as possibilidades para o trabalho do psicólogo sendo fundamental para ampliar a qualidade do atendimento oferecido por esse profissional.
A proposta é que a atuação de psicólogas(os) que trabalham através e com o brincar considere este um campo de estudo multidisciplinar, possibilitando um brincar historicizado, produção e produtor da cultura, uma perspectiva que considere a brincadeira com todas as suas complexidades. Que a atuação de psicólogas(os) busque o enfrentamento dos aspectos que desqualificam a atividade do brincar, mostrando que essa é uma atividade importante, legítima e necessária à constituição subjetiva das crianças.
Referências
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Notas
- Psicóloga, Universidade Federal de Santa Catarina- UFSC. E‑mail: laurapsico95@gmail.com ↑
- Professora e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia na Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC, Brasil. E‑mail:meritisouza@yahoo.com.br ↑
- Professor do curso de Psicologia no Centro Universitário de Brusque – UNIFEBE. E‑mail:gustavooangeli@gmail.com ↑